Emile Brontë, Catherine e a mulher moderna.

Caros Amigos


Domingo de tarde, muita chuva em São Paulo, após ler alguns textos necessários para o trabalho sobre Pierre Menard, peguei-me, olhando desapercebidamente para minha estante e eis que meus olhos se fixaram no romance O morro dos ventos Uivantes. Lembrei-me então de Cathy e comecei a escrever sobre ela e a mulher moderna. O resultado dessa brincadeira de fim de tarde eu os apresento agora. Apenas faço um pequeno adendo – não se trata de nenhuma pesquisa acadêmica, mas sim um exercício de exposição que fiz pra distrair-me um pouco dos trabalhos sérios.
Espero que gostem.



Personagens e enredo são praticamente indissolúveis. Quando pensamos no enredo, simultaneamente, olhamos para a vida que vive nos problemas em que se enreda na linha do seu destino, traçada conforme certa duração temporal, referida a determinada condições de ambiente. O enredo existe através das personagens, as personagens vivem no enredo. Enredo e personagem exprimem , ligados. Os intuitos do romance, a visão da vida que decorre dele, os significados e valores que o animam.

Antonio Candido (Janeiro de 1968)


Emile Brontë, Catherine e a mulher moderna.


A escolha de Catherine para desenvolver este post, tem como objetivo estabelecer uma breve relação entre a representação feminina, estampada na protagonista de O morro dos Ventos Uivantes ,e a mulher moderna, suas evoluções na trama e na vida real.
Porém, não podemos esquecer de que, trata-se de uma relação entre características fictícias com reais, e, portanto, vivenciadas em campos diferentes e, obviamente, com resultados distintos. Por mais que desejemos comparar Cathy com a Mulher, fruto de uma grande revolução ocorrida no século XX, não temos a pretensão de identificar todas essas semelhanças, visto a complexidade da personagem, do espírito criador da autora e da personalidade incomum na mulher atual. Basta pensar que afinidades e diferenças essenciais entre os seres vivos e as personagens de ficção são presentes em todos os momentos. As diferenças são sombreadas por conceitos, fruto de estilo autoral, através da verossimilhança. Segundo Antonio Candido:

É preciso uma investigação sumária sobre as condições de existência essencial da personagem, como um tipo de ser, mesmo fictício, começando por descrever do modo mais empírico possível a nossa percepção do semelhante.

Para ele, uma investigação completa das características físicas da personagem e seu ambiente não nos oferecem uma compreensão global do ser analisado. Deve-se considerar as concepções psicológicas da personagem.
No século XVIII, o romance entrega-se a analise das paixões e sentimentos humanos, à sátira social e política e também às narrativas de intenções filosóficas. Com o advento do romantismo, chega à vez do romance psicológico, da confissão e da análise das almas, do romance histórico, romance de critica e análise da realidade social. E é durante a segunda metade do século XIX que o gênero alcança seu apogeu, refinando-se enquanto escritura e articulando experiências humanas mais diversificadas.
Antonio Candido utiliza para exemplificar tal afirmação a autora Emile Brontë, a qual ele compara com Machado de Assis em alguns aspectos isolados. O principal deles é a reflexão do universo psicológico do autor em seus personagens.

Vale ressaltar que a pequena Emile Brontë conheceu o mundo que cercava sua residência em Haworth e nada além e que Machado de Assis jamais saíra do Rio de Janeiro (mais longe que viajou foi até a cidade de Petrópolis na região serrana); porém ambos conheciam o Universo humano como poucos e escreveram romances que eram verdadeiras obras primas que podem ser comparados com as obras de Dostoievski, Baudelaire, Nerval e que juntos preparam o caminho para Pirandello, Kafka, Glide, Proust e Joyce.
O Que Cathy pode ter em comum com Capitu? Pouquíssimas semelhanças físicas, mas o espírito de liberdade, a predisposição para lideranças, o envolvimento emocional que conduz a vida; podem ser um bom inicio para analisarmos tal relação. Todavia, a semelhança, de ambas, que mais se evidencia em suas histórias é sem dúvida aquela que simboliza os novos romances, a de uma “personagem esférica”.
Catherine era uma personagem que apenas se caracterizava com o seu tempo de acordo com a sua descrição, vestimenta e família; mas se destacava em sua astúcia e sua capacidade de arquitetar planos cujos objetivos eram claros e evidentes apenas para ela. Com ações das quais, para olhos alheios, os fins não justificavam os meios, Catherine ganhou espaço na história sobrepondo-se aos outros personagens ora com seu terrorismo ora com sua ternura e carinho.
No trecho a seguir, onde Catherine relata suas reflexões para sua serviçal, que é a narradora de grande parte do romance, podemos perceber a presença de seu planejamento e um tom macabro que surpreende até a própria Cathy, quanto ao casamento com Edgar e seu verdadeiro objetivo:

- Completamente abandonados! Separados nós! (fala de Heathcliff e sua própria pessoa) – exclamou ela, em um tom indignado - quem nos separaria pergunto-te eu? Enquanto eu viva for, Helena, nenhum mortal conseguirá isso. Poderão todos os Linton da Terra desaparecer, mas não consentirei apartar-me de Heathcliff. Oh! Não é isso que quero dizer... não é isso que pretendo! Não queria tornar-me Sra. Linton a semelhante preço! Ele será para mim o que sempre tem sido. Edgar deve desembaraçar-se da antipatia por ele e tolerá-lo. Pelo menos. Ele o fará quando souber de meus verdadeiros sentimentos por Heathcliff. Nelly, eu vejo agora, tu me julgas uma miserável egoísta, mas nunca te passou pela cabeça que, se Heathcliff e eu nos casarmos, seremos mendigos? Enquanto que, se me casar com Linton, posso ajudar Heathcliff a erguer-se, colocando-o fora do jugo de meu irmão.


No que se refere à personalidade, ela nada lembrava as mocinhas do inicio do século e suas dóceis submissões. Era uma criança arredia, agressiva, insubordinada, imprevisível e às vezes cruel, que encontrou o seu equilíbrio em um homem que desenvolveu tais características com o convívio em sua família: Heathcliff.

A mulher, na personagem de Catherine, possui valores que vão à contra-mão dos valores comuns da época. Num período em que a maioria sonhava em casar-se com um príncipe, o que acontece até hoje, ou pelo menos um homem correto, batalhador, educado, galante e romântico; eis, que a protagonista da trama, sente-se atraída e traída por seus sentimentos, ao tempo em que se apaixona pelo homem rude, grosso, violento e de pouca instrução que foi trazido dentro de um saco, encontrado por seu pai, enquanto vagava nas ruas de Liverpool. Ela aceita se casar com o um “príncipe” (Edgar), porém seu coração lhe mostra o seu verdadeiro amor. Inconcebível para os conceitos sociais, uma mulher de família, trocar um casamento bom, para manter um amor adolescente. Porém, Catherine não se desfaz do seu casamento, pior que isso, ela executa aquilo que é condenável em toda a História da humanidade com um pecado sem perdão pela maioria dos seres humanos: o adultério.
A relação de Catherine com Heathclif é dosada entre paradoxos que se tornaram comuns entre os romances literários. Amor e ódio, carinho e agressão, saudade e exaustão, entre outros; o tempero de uma relação desequilibrada e ao mesmo tempo conduzida sobre um eixo sustentável: O mistério.
Afinal de contas Catherine é uma heroína ou uma vilã?
Para pensarmos nessa questão vamos analisar o enxerto abaixo retirado do romance.Diálogo entre Edgar, Catherine e Heathcliff, após os dois últimos, terem sido surpreendidos pelo primeiro durante uma conversa reservada. Narrado por Nelly:
- O que é isso? – perguntou Linton dirigindo-se a ela- que senso das conveniências podes ter para ficar aqui depois de que te disse esse indecente?
- Estiveste escutando a porta, Edgar? - Perguntou a patroa, em um tom especialmente calculado para provocar seu marido e que implicava ao mesmo tempo displicência e desprezo pela irritação dele.
Heathcliff, que erguera a vista ao ouvir as palavras de Edgar, soltou uma gargalhada de escárnio ao ouvir aquilo, no propósito, parecia, de chamar para si, a atenção do Sr. Linton. Consegui-o. Mas Edgar estava resolvido a não se deixar arrebatar a transportes de cólera contra ele.
- Tenho sido até hoje bastante indulgente para com o senhor – disse ele, tranquilamente – não porque ignorasse o seu caráter miserável e degenerado, mas porque sentia que só em parte era o senhor responsável por isso. Como Catherine desejasse manter relações com o senhor, cometi a loucura de consentir. Sua presença é um veneno moral capaz de contaminar as mais virtuosas criaturas. Por esta razão e para prevenir piores conseqüências, proíbo-lhe dora em diante a entrada nessa casa e advirto-o que se deve sair daqui imediatamente. Três minutos de demora podem tornar essa saída involuntária e aviltante.
Heathcliff mediu a altura e a largura do interlocutor com um olhar cheio de dedem.
- Cathy, esse teu cordeirinho faz ameaças como se fosse um touro- disse ele- ele corre o risco de ter a cabeça rebentada pelos meus punhos. Por Deus! Sr. Linton, causa-me desespero ver que o senhor não é digno nem de que eu o jogue no chão!
Meu patrão olhou para o corredor e me fez sinal para ir chamar os homens. Não era sua intenção aventurar-se a uma luta pessoal. Obedeci a sua ordem, mas a Sra. Linton, suspeitando alguma coisa seguiu-me , quando eu tentava chamar os empregados, empurrou-me, fechou violentamente a porta e deu volta à chave.
- Belos processos- disse ela. Em resposta ao colérico olhar de surpresa de seu marido – Se não tens coragem de atacá-lo, pede-lhe desculpas ou reconhece-te derrotado. Isto te corrigirá da vontade de fingir mais valor do que possuis. Não, engolirei a chave antes que a possa tomar! estou deliciosamente recompensada de minha bondade para com ambos! Depois de uma constante indulgência pela natureza fraca de um, e pela ruindade de outro, recebo como agradecimento duas provas de ingratidão cega, estúpida até o absurdo! Edgar, eu estava defendendo a ti e aos teus. Agora desejaria que Heathcliff te moesse de pancadas por teres ousado pensar mal de mim!


Não se pode afirmar que Cathy é uma heroína ou defende o “bem”, visto que Heathcliff não é o modelo tradicional de herói e que ambos nem sempre vivem em núpcias. Pra ser mais sincero, a relação conturbada deles é mais uma prova dos invariáveis pensamentos e sentimentos que fluíam entre eles.
Podemos pensar que o amor de Cathy era mais o impossível do que propriamente ao signo Heathcliff. A Sra. Linton, que também era Earnshaw e Heathcliff possuía personalidades tão mutáveis quanto seu sobrenome.

Sem dúvida, a personagem, Cathy, exerce um papel fundamental sob os demais personagens e sua carga subjetiva condena a todos a uma eterna luta. Ela no papel de heroína sofre como Heathcliff, com os mesmo questionamentos característicos do Romantismo, ou seja, a divisão entre a razão e a emoção que desnorteiam seu precursor bem como o jogo de classes e convenções sociais , responsáveis pela busca constante de ambos pela própria identidade, pela definição de um lugar na sociedade e pela morte.
De qualquer forma, o parágrafo citado mostra a energia e a firmeza com que agia para defender seus interesses. Esses momentos de fúria e escárnio são comuns durante a trama, no entanto o que nos impressiona é o paradoxo, para os costumes da época, que essa ferocidade produz quando emana de uma figura tão aparentemente inofensiva e dócil que é a Cathy descrita por Emily (tão diferente de Ofélia).
Seria Cathy o reflexo físico e o espírito atormentado, porém contido da autora?
Independente da reposta a essa questão, o que podemos afirmar convictos é a presença do espírito revolucionário da pequena Brontë. Esse espírito, certamente, serviu com base reflexiva de um movimento vivo e crescente que surgiria com manifestações isoladas no século XIX, mas que desencadearia ideais de liberdade e de equalização dos direitos entre homens e mulheres. Até mesmo hoje não é tão fácil entender Emily Brontë e o furacão que carregava dentro do seu corpo miúdo e frágil. Criada em uma austera e rígida família protestante, sem quase nunca ter saído de sua casa na miserável cidadela de Haworth. Emily era a mais retraída de uma trinca de irmãs que fez história e marcou época. Anne, Emily e Charlotte Brontë; cada uma a sua maneira e com estilo peculiar, escreveram e publicaram, com resultados variados.
Emily Brontë morreu em 1928, com apenas trinta anos, sem sequer imaginar que chegaria a ser considerada melhor escritora que suas irmãs, nem que "O Morro dos Ventos Uivantes" seria consagrado como um dos romances mais importantes da literatura inglesa e mundial.
Ás vezes penso que os ingleses da época se depararam com aquilo e ficaram se perguntando, perplexos, onde estava o maniqueísmo simplista e moralizador? Como distinguir os "bons" e os "malvados"? Como classificar uma história que não é realista e não se pretende ser um retrato de costumes e, ao mesmo tempo, não se insere dentro do formato esquematizado do romantismo piegas?
A semente de Brontë, unida a outras tantas semeadas através da arte em geral, germinaram idéias e reflexões sobre os direitos da mulher e como gozá-los.

A Mulher Moderna, não necessita mais de atitudes tão ímpares para se expressar e para fazer valer seus direitos. Mas ainda, em muitos países Africanos e do leste asiático, Ela ainda tem seus direitos confiscados pela sociedade masculina, no entanto essas sociedades não permitem, em alguns caos, o acesso a determinadas obras com fundos ideológicos que possam incitar raciocínios revolucionários como os que ocorreram no ocidente. Isso prova que a literatura foi, nos tempos que precedem a nossa realidade, muito mais que entretenimento, e ainda hoje, é a uma das principais bases ideológicas para criadores e consumidores de arte.
Concluímos que Cathy é evoluída demais para sua época no que se refere às questões intelectuais, racionais ou irracionais e principalmente no fato de ser ela uma mulher que decide os cursos de seu destino, livre e formadora de opinião. E, em relação à Emily, tudo o que se atribuí a Cathy pode ser atribuído a ela com uma diferença: O silêncio de uma vida segregada e real em contraponto ao discursos do espírito engaiolado nas páginas de um romance esmero.
Emily não viveu o que escreveu. Mas legou a Cathy a missão de divulgar o que seus sentimentos diziam, e registrou-os para as mulheres de sua época e de todos os tempos. Lições de igualdade, paixão e liberdade.



Na manhã seguinte - clara e alegre lá fora - a luz do dia se infiltrou pelos postigos do quarto silencioso,enfeitando a cama e aquela que a ocupava com um clarão suave e delicado. Edgar Linton tinha a cabeça apoiada no travesseiro e os olhos fechados. Os jovens e belos traços de seu rosto apresentavam o aspecto da morte quase tanto quanto os do vulto estendido junto de si, e ambos estavam quase igualmente rígidos. Mas aquela imobilidade era a da angústia esgotada, enquanto a de Catherine era a da paz perfeita e eterna. A fronte lisa, as pálpebras cerradas, os lábios sobre os quais parecia volitar um sorriso,nenhum anjo celeste poderia ser mais belo do que ela se mostrava. Eu sentia a influência da calma infinita em que ela repousava. Jamais estivera em uma disposição de espírito mais santa do que naquele instante , diante daquela pacífica imagem de paz divina.Instintivamente , repetia eu as palavras que ela havia pronunciado algumas horas antes .“ Incomparavelmente além e acima de nós todos!. Que ela esteja ainda sobre a terra ou já esteja no céu , sua alma habita agora em Deus !




Então é isso amigos, segue minha sugestão de leitura para o feriado, abraços e até mais.

Sugestão de leitura:
Morro Dos Ventos Uivantes, O - Wuthering Heights
Ediçao Bilingue - Portugues/ingles
Autor: BRONTE, EMILY
Editora: LANDMARK




Imagens: Bronte - tinta sobre tela
´Fotos: Dolores O´Riordan

Um comentário:

  1. Como é difícil ligar pra vc hein meu amigo!!!

    Ótimo artigo.

    Marcelo Penna

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