A crônica da nota 10


Fiquei surpreso ao ouvir a famosa voz de Robson de Oliveira na terça feira, dia 16 de fevereiro, feriado de carnaval, ás 16hs com toda sua ronquidão e taciturnidade proferir as notas dos jurados do desfile das escolas de samba de São Paulo. Minha surpresa foi pelo fato de tal acontecimento, tão comum nas manhãs do feriado de carnaval, ter-se transferido para o período vespertino. E eu que já comemorava o fato de não ter ouvido este ano ao vozeirão que me provoca pensamentos tão antagônicos, fora surpreendido quando, ainda que no meu quarto, percebo que minha mãe ligou o aparelho de televisão na sala e me vem, sem a menor cerimônia um: - NOTA DEZZZZZ!


Quase caí da cadeira em que passei todo o feriado sentado produzindo meu artigo sobre as classificações que distinguem literatura de qualidade de livros comerciais. A voz do presidente da liga, à medida que me irritava, me fazia lembrar que o feriado estava chegando ao fim, para minha tristeza, e que o carnaval havia acabado... para minha alegria. Viu como são sentimentos antagônicos!


Eu precisava continuar minha concentração no artigo, pois este, já havia tomado meu Natal, meu Réveillon, minhas férias de Janeiro e agora o carnaval; se bem que o carnaval eu fiquei feliz de estar tão ocupado, assim não precisei passar perto do aparelho de TV e foi muito fácil negar a todos os convites de praia com micareta, de bloco com serpentinas no centro, de marchinhas nos salões da minha pobre Itapecerica e das festas que alguns foliões insistem em promover na rua de minha casa. Muita bebida e promiscuidade numa festa que os moradores fazem com o cínico discurso de que “a festa é pras crianças”. Nunca vi criança pular carnaval às 2hs da manhã! Pois bem, essa é a hora que a festa costuma se arrastar...

...meus pensamentos são interrompidos por mais uma: NOTA DEZZZZZ! - Meu Deus que vontade de enforcar esse homem. Ah tanto descontentamento dentro de mim que seria capaz de arrancar a cabeça dele. Pode acreditar, caro leitor, seria mais fácil arrancar a cabeça do presidente da liga do que convencer Dona M. , minha mãe, a desligar a TV. Como ambos os atos citados são desejos impossíveis, então tento me concentrar no artigo. Lembrei-me também que eu havia relatado aos meus amigos que o som da voz decretória que finda o carnaval seria também o som do ápice da minha vitória, pois neste momento eu teria acabado o artigo e estaria pronto pra comemorar com muitas Rosas e muito Ouro, mas até aquele instante eu não havia terminado, e quanto mais notas “dez” ele lia, mais eu me irritava e meu artigo não andava.


Precisava fazer algo urgente, algo que revertesse àquela situação. Já que o Sr. Robson estava disposto a me irritar por muito tempo, decidi que eu o usaria para terminar meu trabalho, então peguei meu material, caderno e lápis, e fui para a sala. Olhei para minha mãe com uma cara de poucos amigos, ela não entendeu muito meu emburramento, mas continuou olhando pro televisor em silêncio. Quando derrepente, considerando minha paixão pelo Corinthians ela disse: - Olha lá...a Gaviões está em primeiro! E eu na minha profunda rabugice respondi: - Tomara que eles percam.


Claro que eu não desejaria isso para a escola que homenageia o meu querido timão no ano de seu centenário, mas o fato é que não pude conter minha indignação por ter que assistir aquela chatice recorrente anualmente. Bem, voltei ao meu objetivo, tirar proveito daquela adversidade. Lembrei-me de um bocado de frases, daquelas que lemos nas folhinhas de budismo, de auto-ajuda e até de pacote de bolachas... Esses dias vi uma frase de auto-ajuda num pacote de tabacos do Mato-grosso.


NOTA DEZZZZZZ!


Minha nossa esse cara parece uma vitrola arranhada!


A ultima nota fora para o quesito “Comissão de Frente”, eu acabará de chegar e não poderia ter sido recepcionado de uma maneira pior. A televisão havia dito que “Bateria”, “alegoria e adereços” já haviam sido pontuados. Meu artigo precisava de mais energia, muita bateria, pra organizar os adereços e as alegorias. Muito bem, o próximo quesito veio a calhar- “Conjunto”- comecei a organizar minhas ideias de forma a ordená-las de acordo com o objetivo proposto na minha introdução. Até parecia óbvio esta atitude, mas confesso que até aquele momento não me parecia tão clara e evidente. O Sr. Robson havia me dado a primeira ajuda. Próxima NOTA DEZZZ para o quesito “Enredo”. Maravilha, agora com tudo organizado começava a formatar minha dissertação dentro de um enredo expositivo que reunia as ideias e as teorias dando corpo ao emaranhado de palavras que até então estavam desconexas. O passo seguinte era inevitável: - “Evolução”. Meu trabalho fluiu como não havia fluído nos outros feriados, e nem nos dias que antecederam aquela data mágica. Nem me lembro qual foi a escola que ganhou DEZ em evolução, mas o meu trabalho estava expandindo....evoluindo.

O próximo quesito era “Fantasia”. Era estranho como a regência de minhas ideias e minhas mãos era tão fluente com aquela voz que ditava as notas e cujo rosto do dito cujo eu ainda não havia visto. Estava concentrado no texto, no papel, no Chico Buarque, no Eulálio, na Gaviões da Fiel, tudo ao mesmo tempo, sobre a maestria de mais uma Nota Dez do Sr. Robson. O momento era uma perfeita “Harmonia”, que, aliás, fora o quesito seguinte, não recordava do meu pavilhão cheio de adereços que tinha de carregar, a esta altura, tudo era leveza e fluidez na mágica criação do balé. Não sei bem porque me lembrei de Ravel, e seu bolero fez mais presente que os batuques das caixas e dos surdos que soavam das arquibancadas do Anhembi.


O trabalho estava pronto antes mesmo que o quesito “Samba- enredo” fosse mencionado. Talvez tenha sido a palavra “Samba” que me despertará daquele transe e me fez voltar a real. Senti-me entojado quando apareceram as quadras das escolas comemorando as ultimas notas que saiam a seu favor. Sempre odiei o carnaval por vários motivos, mas o principal é a super-valorização que a mídia dá a esta festa popular. Por isso evito, sempre que posso, o contato com esse atraso nacional e prefiro começar a ver a vida a partir da quarta feira de cinzas.


Mas esta terça feira de carnaval havia sido diferente, e após dez quesitos, uma escola campeã, e muitas vezes ter ouvido a sórdida voz dizendo NOTA DEZZZZ, eu finalmente havia terminado meu tão desejado artigo de conclusão de curso. Bem, se ele será um artigo nota Dez, eu só saberei quando for corrigido. Mas o mais importante é que eu havia terminado e queria agora olhar para o rosto daquele, que sem a menor ideia do que fizera, acabara de me ajudar a concluir esta tarefa. Então fiquei mais um pouco em frente à televisão e alguns minutos depois... Mais uma surpresa. O homem cuja voz assaltara-me minutos atrás e me fizera sair do conforto do meu quarto para um confronto frente ao tube familiar de minha mãe, não era o Sr. Robson de Oliveira, mas sim outro desconhecido do qual nem perdi o tempo para procurar saber quem é, pois para mim a eterna voz maldita de todas as terças feiras de carnaval, que fora por mais de 10 anos, continuará sendo a de Robson de Oliveira, cuja minha antipatia é maior que a renovação. O ódio perpétuo não me permite substituí-lo visualmente, ainda mais que as vozes desses “caras” são muito parecidas. Neste carnaval dei trégua nessa guerra e aproveitei, na trincheira da minha imaginação, para usar as armas do inimigo em minha glória. Mas prometo que no carnaval que vem, agora que já sei o horário da apuração atualizado, estarei preparado para estar bem longe de qualquer meio de comunicação na hora em que sua voz demoníaca proferir a primeira:


NOTA DEZZZZZZ!!!!


ASMC

Um comentário:

  1. Muito legal a sua crônica! Posso imaginar o alívio que vc sentiu após ouvir o último dez deste carnaval.
    Parabéns pela entrega do artigo e pela sua crônica super divertida.

    Bjs,
    Srta. X

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