As cartas de Rita e Macabéa.

Instigando a investigação da crença.



A cartomante não sorriu; disse-lhe só que esperasse. Rápido pegou outra vez as cartas e baralhou-as, com os longos dedos finos, de unhas descuradas; baralhou-as bem, transpôs os maços, uma, duas, três vezes; depois começou a estendê-las. Camilo tinha os olhos nela, curioso e ansioso.



— As cartas dizem-me...

( Trecho de A cartomante- Machado de Assis)







“Madama Carlota havia acertado tudo. (...) Até para atravessar a rua ela era outra pessoa. Uma pessoa grávida de futuro. Sentia em si uma esperança tão violenta como jamais sentira tamanho desespero. Se ela não era mais ela mesma, isso significava uma perda que valia por um ganho. Assim como havia sentença de morte, a cartomante lhe decretara sentença de vida. Tudo de repente era muito e muito e tão amplo que ela sentiu vontade de chorar. Mas não chorou: seus olhos faiscavam como o sol que morria. Então ao dar o passo de descida da calçada para atravessar a rua, o Destino (explosão) sussurrou veloz e guloso: é agora, é já, chegou minha vez! E enorme como um transatlântico o Mercedes amarelo pegou-a (...)”

(Trecho de A Hora da Estrela- Clarice Lispector).





Pensar os estreitos caminhos entre personagens, ambientes, tramas e desfechos de dois cânones da nossa língua; A Hora da Estrela, de Clarice Lispector e o conto A Cartomante do grande Machado de Assis, é o mesmo que mergulhar no vasto universo da interpelação dos valores e crenças vividas por ambos.


Mais do que uma coincidência, as obras promovem um embate ideológico no que se refere à questão do elo que une todas as classes e crenças, o destino. Uma observação mais dirigida, para compreender esta dialética, é observar de forma mais precisa um personagem incomum, nas duas obras, a conduta da advinha.


Seria um equivoco de interpretações? A imagem de anti-heróis tão bem construída por ambos os autores é a discrepância de uma alma suburbana e irresponsável?


A tragédia presente nos desfechos de ambas as histórias nos reflete uma intencionalidade discutível no que se refere às apreciações do tema. Podemos estabelecer diretrizes comparativas que denotem, de forma objetiva, os discursos ideológicos dos autores mencionados, a fim de promover um olhar mais crítico das cenas- ápices de cada um.


A introspecção de Clarice e a crítica aos costumes de Machado encontram-se em um ação, insana ou não, de aglutinar os sonhos de seus personagens em pitorescas atitudes marginais. Pois tanto no romance de Clarice como no conto de Machado, a prática da cartomancia é ilegal, censurável e vinculada a outras atitudes ilícitas como prostituição adultério; reforçadas epifanicamente com linhas de expressões figuradas.


Lembremos de Erich Auerbach quando este afirmou: Só em virtude da relação mais geral, isto é, só porque somos seres humanos, ou seja, sujeitos ao destino e à paixão, sentimentos, temor e compaixão (Auerbach 1946). A nata desta mensagem, se conduzida aos atos de Rita, Camilo e Macabea, pode ser interpretada como, um destino inevitável, que na verdade aparece na obra como uma “escolha”. A escolha pela felicidade no amor, de Camilo e Rita, ou simplesmente na aceitação, após a descoberta da verdade sobre si mesma, da pobre e sonhadora Macabea.


Contudo, nenhum dos desfechos justifica o ato da Cartomante que fez de seu trabalho o estopim de um medo enjaulado em sua penumbra de forma que esta aparição fosse de acordo com as metáforas utilizadas, realizada com a mais perfumada e bela das imagens: A mentira.


Mentia ou ignorava? Qual era o verdadeiro ato destas mulheres que viviam da simplicidade alheia?


Pensemos no conto “A Cartomante” e no romance a “Hora da Estrela”, ambos, cânones acadêmicos de nossa literatura, escritos em épocas distintas, por autores cujas características são extremamentes singulares, exceto, da escolha do portal para o desfecho das suas trágicas histórias: a crença na arte divinatória.


A Cartomante, conto do final do século XIX utiliza-se dessa crença para decidir o destino de um casal burguês apaixonado, bem- sucedidos financeiramente, viventes em sua própria região e com apenas uma dúvida: poderiam ou não serem felizes após o adultério, obedecendo a corações que sobrepujavam os valores de fidelidade e caráter socialmente apreciados na época.


Já em a “Hora da Estrela”, romance de 1977, a pobre Macabéa, imigrante, sem instrução e apaixonada, procura conselhos da cartomancia em busca de uma esperança que lhe dê forças para enfrentar os dias difíceis, comuns em sua fatídica existência.


A relação entre o papel fundamental da cartomante no desfecho dessas duas histórias é o corpus base de análise desta perspectiva sugerida. Sob a ótica da construção verossímil e o discurso de controle que ambos, os autores trabalham em suas obras.






O que intriga e instiga esta pesquisa é a semelhança narrativa que ambas,as histórias, no dipolo clássico “felicidade e tragédia” possuem como características sinestésicas de seus protagonistas. Deve-se buscar com esta análise uma maior compreensão dos textos e concomitantes afirmações que enriqueçam ainda mais, a tão bem constituída, percepção crítica sobre estas obras.


Transportar a crendice popular para o universo da literatura é como afirma Eric Auerbach em seu antológico trabalho “Mimesis”: “A maneira de dar vida a literatura” (Auerbach 1946). A história da humanidade está envolta a todo tipo de crença que reza a sorte e o destino de civilizações inteiras ou apenas de pessoas comuns.


Macabéa e Rita, cada qual com sua necessidade, encontram na dúvida das possíveis interpretações que atendam seus interesses, dada a tragédia que se aproxima de cada uma. Desfecho trágico, perceptível ou não, são alimentados pelos autores como alucinações produzidas pelo medo e pela ansiedade. Sentimentos que cegam as protagonistas e as conduzem ao além. São inseridos nestes contextos o que Walter Benjamin chamou em seu ensaio A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica (BENJAMIM 1955) de valor de culto de obra e valor de exposição, na reconstituição da história na arte: A produção artística começa com imagem ao serviço da magia. O que importa, nessas imagens, é que elas existem, não que sejam vistas.


Pensar a tragédia como produto da crença, mística ou não, é produzir um efeito desafiador para o leitor destas obras. Esse caminho levará o leitor destas obras ao idear de um produto que transcenda o pensamento machadiano ou o de Lispector, superando a búsitis natural deste tipo de reflexão e avançado com solidez sobre o prisma do conhecimento.

2 comentários:

  1. Olá passei para conhecer seu blog ele é not°10, show, espetacular desejo muito sucesso em sua caminhada e objetivo no seu Hiper blog e que DEUS ilumine seus caminhos e da sua família
    Um grande abraço e tudo de bom
    Ass:Rodrigo Rocha

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  2. Obrigado Rodrigo.
    Visite este espaço sempre que quiser.
    Forte Abraço.

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