Acabo
de ter uma aula com o professor Wolland e tenho algumas coisas a dizer. ...
Quando
peguei em mãos a obra “O Mestre e Margarida” de Mikhail Bulgákov (1891-1940)
estava preparado para ler uma crítica ferrenha ao “comunismo” russo conforme
haviam me indicado. Por conta de minhas
ideologias de esquerda a leitura dessa obra seria um grande desafio, pois,
ainda que eu me considere uma pessoa aberta às críticas, é certo que elas
precisam vir acompanhadas de bons argumentos, do contrário, eu abandonaria o
livro nas primeiras páginas. Mas, ainda no primeiro capítulo, quando o
professor é apresentado ao crítico e ao poeta, fiquei certo de uma coisa: Não
se tratava de um romance que criticaria o regime soviético, mas sim uma crítica
à corrupção humana, independente de sua opção política.
Edição 2009 |
O
livro pode ser classificado como realismo fantástico em partes. Quero dizer, ao
tempo em que vislumbramos uma descrição profunda do narrador e uma tentativa de
ambientalisar a narrativa na sociedade moscovita do início do século XX, ele
nos carrega, de maneira delirante, ao universo paralelo da fantasia e do
surrealismo, sempre dotado de uma criticidade ácida aliviada por uma animação
simbólica que remonta cenários da Disney e dos irmãos Grimm.
NOTA:
Se o leitor dessa singela nota quiser conhecer o enredo do romance, sugiro que
o leia. Afinal, ninguém é mais apropriado para lhe contar isso que o próprio Bulgákov.
O que pretendo expor nessas linhas é uma interpretação do que me foi
apresentado pelo autor.
Já
nos primeiros capítulos é possível notar a impotência das ideologias humanas,
manipuladas de acordo com o interesse dos políticos, diante da sagacidade do Demônio.
Sobretudo porque ele não dispõe de armas celestiais ou argumentos infalíveis capazes
de convencer a humanidade de suas verdades, mas sim porque ele usa a maior de
todas as forças contra o homem, cuja potência, ao ser demonstrada, é
reconhecida, a princípio, como inacreditável, insuperável, maravilhoso e,
portanto, invencível: A farsa.
Mikhail Bulgákov |
As
peripécias do Demônio acabam por revela-lo a todos aqueles que cruzam seu
caminho e que atônitos passaram o resto de suas vidas traumatizados pela
perturbadora sensação de que ele jamais os deixará. Satanás é um espelho. Na
obra ele surge como um mago, incita os homens e realiza desejos. No entanto,
tais realizações são tão frágeis quanto o caráter dos felizardos. Wolland, o professor demoníaco, e seu séquito
escolhem suas vítimas na maquiada sociedade socialista, cuja adesão ao regime
se dá muito mais pelo medo que pelo compromisso com a causa, e os instiga a
derrubarem suas máscaras e revelarem a pérfida alma egoísta que habita cada um.
Ninguém, absolutamente ninguém, resiste aos dólares, às roupas parisienses, a
luxúria e a oportunidade de satisfazerem seus impulsos de consumo. Mesmo que isso signifique uma declaração de
ódio à causa comunista. E assim, os camaradas vão caindo. Não diante do irreal
ou do fantástico “Ser” que surge numa tarde quente de Moscou, mas sim, diante
do Demônio que sempre estivera instaurado dentro de si.
Os
heróis da trama são justamente “O Mestre” e sua amada “Margarida” que, aliam-se
ao Demônio não por suas almas fétidas e sandias, mas, ao contrário, pela pureza
e verdade de seus sentimentos. O primeiro,
por romancear a vida de Pôncio Pilatos, recebe como punição a indiferença da
sociedade intelectual e críticas que o eliminam do cenário cultural
bolchevique. Na impossibilidade de prever outros caminhos, que na verdade não
haviam, ele enlouquece e queima sua obra, desagradando profundamente sua amada,
Margarida, que por sua vez é casada e vive uma vida de prestígio ao lado de um
rico russo numa sociedade de “iguais”. Diante do seu quadro de aparente
loucura, o Mestre é encaminhado ao hospício pois, além da impossibilidade de
viver sem sua amada, acaba por afirmar que conhecera o Diabo. Margarida, na
busca incessante para reencontrar seu Mestre querido, sucumbi a tentação de Satanás
e, por amor, aceita abrir mão de toda e qualquer aparência social em busca do
seu objetivo. Duas almas puras que a
corrupção humana, violentamente, separara em nome de interesses mesquinhos, na
defesa de uma causa de adesão falsa. Para o Mestre e Margarida Satanás não se
mostra austero, não assusta e muito menos representa o Mal. Isso porque a
realidade de suas vidas, antes do mágico encontro com Wolland, era bem mais
assustadora.
Pilatos e a primeira audiência de Yeshua |
Paralelo
ao enredo carregado de símbolos que revela as relações corrupta da sociedade,
há a revisão histórica da vida de Pilatos e Mateus Levi. O apóstolo, acusado
por Cristo de ser um falso marqueteiro de seus feitos, destaca-se pela sua
fidelidade e resignação aos propósitos de Yeshua. Nessa releitura, Pilatos
surge como alguém que fez o possível para que Jesus não fosse condenado, por
entender que esse não oferecia nenhum mal aos interesses de Roma, e que a
decisão de Caifás, um corrupto religioso da época, era irresponsável, já que
condenaria a morte um homem sem crimes para satisfazer sua leitura arbitrária e
equivocada de Davi. Yeshua, com sua simplicidade e retórica, perturbou Pilatos
por muitos anos. O procurador, assim que Pôncio é chamado em grande parte do
romance, não teria mais paz, mesmo depois de sua morte, que aliás nunca fora
mencionada.
A
Moscou, repleta por corruptos como Caifás, agora revivia o embate entre Pilatos
e Levi. No passado, o procurador ofereceu a Matheus a liberdade e a realização
de todos os seus desejos e recebeu do discípulo um categórico NÃO. Matheus
estava decidido a redimir-se do mal feito ao seu Mestre com devoção
incorruptível. Este ato aprofunda ainda mais Pôncio na melancólica e efêmera
cova aberta de sua alma. No reencontro, Levi pede a Wolland que leve os heróis
com ele, pedido atendido com prazer pelo Demônio, pois, depois de tanto tempo,
a alma pura e sincera daqueles jovens, flutuava acima do ar contaminado
moscovita, assim como pura era o semblante, o coração e a memória de Yeshua. Ou
seja, aqueles amantes deram a Pilatos a possibilidade de sua redenção.
Salvá-los foi a sua contribuição para os desígnios de Jesus que, como retribuição,
deu ao Mestre e a Margarida o poder de libertá-lo.
A
obra é carregada de símbolos cuja interpretação requer anos de análise, talvez
por isso esse livro, mesmo depois de tanto tempo escrito, carregue em si a
áurea dos grandes clássicos.
Dentre
os inúmeros personagens de destaque do romance, gostaria, para finalizar, de
falar brevemente de um que chamou muito minha atenção. Trata-se de Artchibald
Artchibádovitch cuja admiração do narrador parece não ter fim. Personagem de grande
importância para a engrenagem do sistema social, respeitado pelos intelectuais
e políticos de Moscou, é proprietário de um restaurante na Sandovia, importante
avenida moscovita, conhecido por reunir a nata da sociedade socialista. Esse personagem
surge em dois momentos e apresenta práticas curiosas. Na primeira ele humilha
um funcionário e o constrange na frente de todos, revelando sua autoridade e
violência, sem abalar, contudo, a admiração dos outros e do narrador. No
segundo momento, próximo ao desfecho do romance, ele flerta com Korôviev e
Behemoth, membros da trupe do Demônio, e os auxilia na destruição do
restaurante, sem deixar suspeitas sobre si, fugindo do local de destruição com
um breve sorriso no rosto e ainda sendo admirado por todos. Esse Artchibald
Artchibádovitch é uma figura emblemática. Pois mesmo diante de tantas agressões
claras aos interesses do Partido Comunista, mesmo diante de auxílio aos
estrangeiros que fulminaram a racionalidade dos “camaradas”, ele ainda é
reconhecido como um grande homem, um admirável cidadão, um alguém acima de
qualquer suspeita.
Satanás
respeita Artchibald porque vê nele um ser que de tão escrachado em suas
atitudes macabras acaba por cegar aos seus próximos, como se fosse um anjo
caído, que ninguém jamais presenciou a queda. Quantos desses não conhecemos
entre nós? E por que nunca são pegos? Depois de ler o livro comecei a achar que
eles talvez tenham mesmo um pacto.
Concluo,
com minha leitura, que a crítica de Bulgákov não é mesmo ao ideal comunista, ou
ainda aos pensamentos de Marx, como alguns maldosos capitalistas presumem ao resenharem
o livro. Trata-se de um modelo de sociedade corrupta que se revela viva e
crescente nos espaços onde o Demônio, com seus fetiches e prazeres, corrompe
milhares de almas diariamente e que infesta as crenças em ideologias
transformadoras ao desvirtuar e marginalizar os poucos humanos que ainda
acreditam em Deus. Para um ateu convicto como eu, a conclusão de uma leitura
orientada por termos como “Diabo” e “Deus” não parece muito coerente, então lhe
peço, leitor benévolo, que substitua esses verbetes, aqui registrados, por “Capitalismo”
e “Amor”. Não tenho aqui a pretensão de dizer verdades ou mentiras, é só uma
opinião de um jovem leitor que acabou de tomar um suco de damasco com espuma, e
que entorpecido pela madrugada fria na serra, decidiu encerrar suas
elucubrações e descansar. A distância ouço alguns soluços, silêncios da noite e
a voz quente do professor Wolland:
-
A aula acabou!
Itapecerica
da Serra, 05 de Agosto de 2014
*A banda Rolling Stones se inspirou
nessa obra para a composição de um de seus maiores clássicos Sympathy For The
Devil.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Para fazer seu comentário, por gentileza, deixe seu nome seu e-mail. Dê sua opinião sobre os temas e, ou, o blog. Muito Obrigado!