Leite Derramado - Sobre narrador e personagem.

Caros Amigos


Acho que nunca é demais dizer que o livro Leite Derramado, apesar de todo o seu apelo comercial, não pode ser visto como uma obra menor. Estou desenvolvendo um artigo sobre o assunto, o qual devo publicar neste espaço até o mês de Abril.
Antes disso, gostaria de reproduzir o belíssimo trabalho do professor André Glaser sobre a narrativa em Leite Derramado. Tenho certeza de que após este post o quarto livro de Chico Buarque será visto com  outros olhos.
Então, desfrutem desta maravilhosa aula do professor André Glaser publicado na livraria da folha no dia 08/01/2010.


Leite Derramado - Sobre Narrador e Personagem


Inicialmente, já desde o primeiro capítulo, o que me chamou atenção no último livro de Chico Buarque, "Leite Derramado", foi uma estranheza -uma narrativa contada em primeira pessoa, por um homem já bastante idoso, em um leito de hospital de segunda classe, formalmente organizada com uma clareza surpreendente. Poder-se-ia questionar a qualidade do romance, se um efeito estético não prendesse o leitor desde as primeiras sentenças. Um narrador em primeira pessoa pressupõe, em geral, uma proximidade entre o que é narrado e o estilo da narrativa - um envolvimento emotivo ou distanciamento instaurados pelo jogo lúdico da própria ficção. Assim, um narrador louco tende a usar palavras que não se organizam racionalmente, um narrador tenso fará uso de estruturas linguísticas tensas e um narrador distante será frio no tom de seu discurso. Não deveria um narrador em idade avançadíssima, doente e com uma memória já bastante falha, apresentar uma forma discursiva que, ao menos em certos momentos, fosse falha? Não falo aqui da organização do discurso, que se mostra embaralhado em vários momentos da narrativa; o foco é no domínio da sintaxe que percorre todo o romance, em um estilo próprio, que gera uma certa autonomia...



Uma análise pode destacar, entre tantos outros aspectos do livro em questão, três linhas de força que percorrem o romance. Uma, a estória de Eulálio contada por ele mesmo, que, logo nos primeiros capítulos, já se mostra de veracidade bastante duvidosa. O que temos de mais "real" são as impressões do espaço que rodeia o doente - o texto projeta um mundo fictício estável que nos faz "acreditar" na existência do quarto de hospital, da televisão alta, da enfermeira, da irmã etc. Quando, contudo, o que temos são os relatos de seu passado, a confusão de uma memória fraca instaura a dúvida. Só um leitor ingênuo levaria a sério o que está sendo relatado. Não só o passado, mas também o presente são constantemente distorcidos. A enfermeira escreve a narrativa? Ou, mais provavelmente, tem sua caneta sobre um prontuário de hospital? Matilde existiu? Ou é uma criação de uma imaginação alienada da realidade?



A sucessão dos acontecimentos responde pela lógica da associação. Já no primeiro capítulo este esquema organiza a narrativa. Eulálio quer casar-se com a enfermeira, que poderá dispor das coisas da mãe, na fazenda. Daí, fala de sua ex-mulher, que lá morou com ele, e uma propriedade leva-o a comentar a outra, o casarão de Botafogo, comprado pelos dinamarqueses dadas as trapalhadas de seu genro. Volta ao presente, comenta só haverem homens no hospital, de modo a poder falar das putinhas do Hitz, em Paris. Seguem por associação os assuntos de família, então tratados em francês etc. Num primeiro momento, esta estrutura nos faz pensar em uma narrativa construída pelo fio do desejo, tecendo as associações de forma a chegarmos, em algum momento, numa consciência das forças inconscientes que direcionam este fluxo do pensamento do protagonista. Mas logo percebemos a fraqueza desta linha argumentativa, dado o caráter cada vez mais impalpável do que é dito. Embora um forte erotismo percorra todo o texto, a possível traição de Matilde, por exemplo, é tratada com tal distância e sob tantas perspectivas que só nos resta, se não a tratar apenas como mais um episódio do romance, não confiar a leitura a esta linha argumentativa como principal.



Mas então o romance traz uma forte vertente histórica - por baixo dessas associações gratuitas corre um processo seletivo muito bem construído, que vai mapeando momentos da história de um país corrupto, racista, aristocrático em sua organização classista. Do caos das memórias do protagonista surge uma outra dimensão, muito mais palpável por sustentar-se sobre personagens que, além de sua individualidade, comportam generalizações. O Vidal, por exemplo, é quase um ícone de certa vertente da classe dominante brasileira capaz da frieza máxima para manter as aparências da boa conduta e, porque não, da pureza racial. Matilde, de filha bastarda, passa a ser aquela negrinha que pegamos para criar. Já a decadência dos Assumpção não se limita, por sua vez, a um caso de família. A sua incapacidade dupla -fazerem a aposta financeira certa e manterem-se "puros" (longe do estigma negro em seu sangue)-, marca a história de tantos sobrenomes brasileiros. Uma falha trágica os impede de funcionar dentro das regras do jogo de classes à brasileira, uma democracia com profundas raízes aristocráticas.



Concomitante a estas duas linhas de força, temos a que mais interessa do ponto de vista literário -esta estranheza acima comentada da clareza do discurso. Se Eulálio narra sua estória, não pode ser o mesmo Eulálio que o faz com uma prosa tão clara. Aqui, o narrador se torna ambíguo: entre o conteúdo narrado e a forma narrativa uma brecha se abre, um espaço que instaura uma contradição viva. E ao avançarmos na leitura, mais e mais este deleite de uma prosa "musical" toma posse do leitor. Momentos supostamente de grande tensão emocional mantêm o mesmo estilo calmo, seguro, com pontuação quase poética, que se desdobra por todo o romance. Se tomarmos, por exemplo, um dos episódios mais dramáticos da narrativa, no final do capítulo oito, quando Eulálio narra seus encontros eróticos com Matilde na cozinha, detectamos o mesmo ritmo claro, um andante que não se dobra ao ímpeto emocional da cena. Um impulso métrico parece emergir, com a predominância de iâmbicos e dátilos que dão à prosa um tom quase poético. E neste ponto nos perguntamos, por quê?

Um leitor curioso talvez dê atenção apenas à estória, aos acontecimentos relatados de pouca credibilidade. O leitor que se deleita no mergulho em uma prosa formalmente bem escrita talvez termine o livro com a impressão de ter lido algo belo. Mas no cruzamento entre ambas estas possibilidades, salta uma terceira -a crueza da distância, que pode marcar tanto o conformismo com uma história que não muda quanto a ironia fina e triste da recusa da poesia a envolver-se com a sujeira do recorte do mundo narrado.


Ou ainda uma terceira opção. Não estaria a prosa, aqui, trazendo para si um recurso tão utilizado na poesia, inclusive na presente nas canções compostas pelo próprio autor -a distância radical entre o ritmo e musicalidade das palavras e o conteúdo do texto? Tantas vezes o ritmo alegre do samba fala da tristeza, da perda, do sofrimento. Há algo próximo em "Leite Derramado", mas trazido criticamente (e artisticamente) às tensões e possibilidades características do romance. O narrador em primeira pessoa tem uma história considerável nos desdobramentos da literatura ocidental, e no Brasil suas potencialidades já foram bastante exploradas -basta citarmos Machado de Assis. Aqui, nosso narrador é mais uma vez distendido, desdobrado, explorado ao máximo. E no vão criado entre forma e conteúdo, a crítica social ganha muito. Se uma das conquistas formais do narrador em primeira pessoa foi permitir que as mais diversas e opostas visões de mundo ganhassem corpo a partir de um de seus membros e/ou defensores, agora esta voz é marcada pela distância que embaralha a construção do narrador-personagem, criado dois mundos paralelos, mas unidos estruturalmente. O alcance da crítica ganha nova amplitude que lhe possibilita apalpar, de um outro ângulo, o poder e sua autonomia que, por mais absurdo que pareça, dada a "desumanidade" (tão humana, por sinal) dos seus traços, continua ditando as normas.



Não tenho dúvidas quanto à qualidade literária do livro. Este narrador em primeira pessoa narra da boca do personagem e se afasta dele. E este prisma da forma, para citar Anatol Rosenfeld, lhe dá "certa transparência ou 'iridiscência' em direção a significados mais profundos, em que se revela o 'sentido', a 'ideia' da obra" 1. A projeção do mundo ficcional criado pelo "conteúdo" ganha uma tridimensionalidade, indo além dos limites do ponto de vista do narrador e construindo um espaço ficcional mais abrangente, que cria neste outras possibilidades de leitura da sociedade brasileira. E não deixa de merecer atenção o fato de este impulso crítico vir pelo bom e velho livro, ainda vivíssimo, como momento de um grande crítico que por tantos anos se debruçou sobre a música e o drama.



O momento presente, tão perto historicamente e tão longe ideologicamente do impulso democrático que movimentou a arte e cultura críticas dos anos setenta, não perdeu o impulso crítico. "Leite Derramado" atesta o interesse do autor em manter viva a arte politizada, que faz parte de sua história pessoal e de um viés importante da história de nosso país. Um golpe de mestre, de grande maturidade literária. E de mensagem poderosíssima, se não recusarmos ao olhar multifacetado que o romance parece sugerir.



1Anatol ROSENFELD. "Literatura e personagem". In: A personagem de ficção. SP: Ed. Perspectiva, 2007.



Obrigado professor André

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