Relendo a história da humanidade



O romance em questão aborda diversas possibilidades de aproximação entre os textos religiosos, os propósitos nazistas e os contos de Borges. O protagonista, homônimo do grande escritor argentino, decide matar o grande nome da literatura de seu país no século XX, e para isso, rememora os motivos que vão além de um ciúme ou de uma vida ofuscada por ter o mesmo nome que alguém famoso. Aliás, o protagonista é também um escritor. De menor envergadura, é claro. O que motiva vingança é a morte de milhares de judeus durante a segunda guerra, que de acordo com o romance, é motivado por uma interpretação forçosa e descompromissada de um conto borgeano.
Além de bem escrito o texto apresenta argumentos convincentes e se posiciona como uma crítica às famosas “teorias da conspiração”. O autor imputa nas bases das reflexões nazistas (ainda durante as reuniões dos Tulas) um personagem que fora o grande responsável por motivar e acender a fúria dos alemãs contra os judeus. Esse facínora seria Borges. Mas um a “borges” muito próximo de Pierre Menard, um “borges” leitor, que recepciona a obra de seu homônimo e a decodifica a seu bel-prazer, primeiro por dinheiro, depois para ficar perto da mulher que ama, Raquel, depois por sobrevivência... em todas as situações ele, que é a presença do Outro no romance, deixa de revelar sua verdadeira identidade para atender a uma necessidade imediata. Ele, Borges, cujo nome e a trajetória fazem parte de um destino inexplicável sabe que sua grande maldição é ser uma extensão (a prática da teoria do autor famoso) do Outro.
Adorei o romance, porque também sou leitor de Borges, mas creio que aqueles que não conhecem os contos mencionados no livro, ficaram um tanto quanto perdidos em algumas explicações.
Ainda assim, o autor foi muito feliz em sua criação e por ora nos faz acreditar que a leitura mística de Borges em relação à história é uma grande irresponsabilidade do escritor argentino. No entanto, o ultimo capítulo que concentra uma epístola de Borges para Borges revela a máxima do livro. Diante do túmulo, a imagem do corpo presente e da morte que encerra as possibilidades, Borges (o homônimo) entende que tudo é uma simples interpretação e, segundo o escritor, uma grande perda de tempo. Viver o presente, sem buscar significados no passado, requer “coragem”.

Nota de Leitura - Memória de minhas putas tristes



Aquele que se acostumou a ler os “épicos garcianos”, que consagraram o escritor colombiano, sentirá falta de algo neste breve romance. Sobretudo no que se refere à construção das perturbadas personagens de Cem anos de Solidão ou ainda da monomania amorosa de Amor em tempos de Cólera.
O breve relato do idoso narrador em Memória de minhas putas tristes esboça uma vitalidade psíquica que pouco dialoga com o velho José Arcádio Buendia, fundador de Macondo, que fora amarrado em um tronco de árvore e faleceu praticamente esquecido pela família e outros moradores do vilarejo. Aqui, o velho sem nome, que atende pela alcunha de “Sábio”, escreve uma coluna semanal de sucesso em um jornal da cidade e possui a plena ciência de seus atos. Ou seja, esse velho pouco se assemelha aos antigos “heróis” de Marques. À medida que a leitura se desenvolve sentimos falta de uma descrição mais pormenorizada de sua história, de seus descaminhos... O pouco que se revela se instala na narrativa por meio de flashes narrativos sem o mergulho comum em seus textos.

Contudo o traço garciano na descrição espacial continua marcante e sinestesicamente impactante, como sempre.  O sufoco provocado pelo calor, o odor dos cantos e as carnes que exalam suas essências empestam as descrições do ambiente. Continua-se a necessidade de lê-lo com uma garrafa de água por perto.
Outro traço recorrente em suas obras e que surge com força em Memória de minhas putas tristes, é a presença de uma importante figura em suas tramas: A alcoviteira.
Em Cem anos de Solidão, Pilar Temara serve às várias gerações da família do protagonista e ainda exerce uma influente participação no enredo ao ser a única testemunha ocular da ascensão e queda dos Buendías.  No ótimo Amor em tempos de cólera, é a própria Sra. Tránsito Ariza, mãe do protagonista, que executará a importante missão de servir-lhe com mulheres que apaziguarão suas dores oriundas de um amor não correspondido.
Neste ultimo romance de Gabriel Garcia Marques, Rosa Cabarcas é, além da cafetã que costura toda a trama envolvendo o “Sábio” durante sua segunda metade de século, a única amiga e conselheira do herói do romance. Reforça-se aqui essa marca irremediável deste escritor que constrói, em suas alcoviteiras, personagens cuja lucidez e filosofia - embasadas nas experiências de vida - iluminam , acolhem , protegem e salvam os homens que quase sempre são representantes de importantes figuras da sociedade.
E a alcoviteira se faz ainda mais necessária já que o autor insiste em reforçar a virilidades de seus protagonistas, em contraste com imagens físicas por vezes decadentes e a espera da morte.
Enfim, traços importantes saltam da tela tipicamente colombiana que Marques pinta e que seus caráter breve nos deixa uma sensação triste e amarga de que faltou fôlego.
Aquele fôlego narrativo que o próprio autor nos acostumou durante as inesquecíveis viagens que seus romances de outrora nos proporcionou.
Faltou mais Garcia Marques nesta curta obra que nos deixa ainda mais tristes porque sabemos que curto também foi seu tempo de produção, se consideramos o tempo comum dos escritores de sua geração- De La Hojarasca (1955) até Memória de minhas putas tristes (2003) são apenas 48 anos- um produção rica, mas breve em minha opinião. Queira deus que eu esteja errado.  E que não seja esse seu ultimo suspiro literário, pois quem se acostumou com as epopeias dos amores abrasadores perpetuados nas obras anteriores, não se contenta com esse breve coito que a Memórias de putas tristes nos ofereceu.

Ari Mascarenhas – 13/12/13

A práxis em cela* – uma breve leitura de Memórias do Cárcere


Memórias do Cárcere – Relatos da experiência do autor durante a prisão que sofrerá pela ação do governo Vargas ainda contra os reflexos da Intentona Comunista.
Publicada em 1953, essa obra póstuma sofreu diversas sanções, incluindo uma tentativa de censura do próprio PCB, que alegou a necessidade de ocultação de determinados termos e avaliações do autor alagoano.

 Nessas memórias de Graciliano Ramos podemos observar além de seu distanciamento plausível para a confecção menos apaixonada e mais racional, uma despreocupação com os modelos literários em voga na época. Auge do modernismo brasileiro, Graciliano está mais preocupado com o conteúdo de sua obra e com a sua identificação com os registros propostos do que necessariamente agradar aos interesses de uma estética comprometida com os movimentos artísticos de um período histórico.


Memórias do Cárcere é também, dentro dos preceitos defendidos por Lukács, um romance histórico de natureza documental, que imprime ao protagonista, a obrigação de observar e transformar o seu espaço. O herói, que por um longo período mostra desconhecer as causas pelas quais fora preso, por diversos momentos, observando outros companheiros de confinamento, analisa sua própria capacidade revolucionária e passa a autoavaliar suas atitudes que sequer são dignas de um prisioneiro político, no sentido de que, ele jamais tivera, verdadeiramente, uma atitude revolucionária. Estes questionamentos nos encaminham para os valores do narrador que jamais foram externados na prática.

A força da introspecção de Memórias do Cárcere está em criar um universo de conflito para as discussões que o universo exterior não poderia saber. Tanto pelo poder opositor do Estado Novo, do qual era acusado de subversão, quanto pelos próprios princípios do partido comunista (primeiras manifestações) que também lhe acusaram de pertencer. Aqui, nesses espaços de conflito e criação é que se estabelecem as diretrizes para o que viria a ser a mais brilhante obra memorialística que temos registro em nossa língua.
Na introspecção registrada nos manuscritos do cárcere e/ou ainda aquela que fora produzida anos depois, quando de seu preparo para o projeto do livro, o autor nos presenteia com uma ficção baseada em registros memorialísticos de forte impacto catártico que não nos permite questionar o teor jornalístico de suas observações.


Essas marcas ficcionais podem ser percebidas na onisciência do narrador quando mergulhado nas preocupações de personagens alheios. Como se uma percepção das expressões desses personagens fosse o suficiente para determinar as profundas angústias que estes sentiam, ou que, numa leitura mais atenta, denotam apenas o reflexo de sua própria angústia diante da incerteza de seu destino, que lhe acompanharia em quase todo o seu percurso como prisioneiro. No entanto, o que há de mais evidente nessa estrutura narrativa, que busca alinhar os fatos reais com o uso dos fatos criados, é a própria percepção do narrador com o ato da criação na edição das memórias ora como positiva e ora como repulsiva pelo próprio:

O diabo é que, se me decidisse a narrar por miúdo a conversa do capitão, tanchar-me-iam de fantasista. Ou dar-me–iam crédito indivíduos que andassem no mundo da lua, idiotas ou românticos (RAMOS, p89).


A observação de atos de seus próximos, aliados ou não, serve de um prato cheio para uma análise de sua postura com “revolucionário” (termo pelo qual poderia ser acusado) e para uma análise mais detalhista acerca da atitude do próprio movimento revolucionário que se propunha como resistência. Ações que a atitude de um militar, que sem nenhum motivo aparente decidia por ajudá-lo, e que, para qualquer um seria apenas um alimento da causa em que se injetava a confiança e a própria liberdade, para o narrador era motivo de questionamento sobre a sua práxis.

Capitão Lôbo, portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no caso uma espécie de deserção. Impossível explicá-la. Se ele condenava s minhas ideias, sem conhecê-las, direito, porque me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e brutalidade com certeza me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior que nos encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha neles – e as coisas não se passam como havíamos previsto: passa-se de modo contrário. A exceção nos atrapalha, temos de reformular julgamentos. (RAMOS, p. 87-88)

E fora a busca por essa renovação rápida dos valores que fizeram esse prisioneiro peculiar, fugir às atitudes de reflexão comuns a esse tipo de situação: A da adesão  e da repulsa.

Ou seja, a atitude de um condecorado, um inimigo declarado, que discordava de seus preceitos e ainda assim, contra a força que o emergia e o condicionava, agia. Isso posto, a atitude de resistência é o que aquela intelectualidade não conseguia compreender e, portanto o grande gatilho para os questionamentos desse cárcere que vivera até então o espírito de uma subversão que pode ser observada no enxerto abaixo:

A nossa vida não tem muito valor, às vezes se encrenca e desejamos a morte; faltando-nos coragem para o suicídio, exibimos outra forma de coragem; queremos desaparecer; é uma perda individual. Mas ninguém, de senso perfeito, joga fora os seus bens, pois nisso repousa o organismo social – e o sacrifício constitui prejuízo coletivo. Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário do que eu. Tinha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante (RAMOS, P 88).




Memórias do Cárcere é mais que um documento de resistência, é sim, um importante registro dos preceitos reflexionantes sobre a práxis indispensável no dia-dia de quem almeja uma transformação, independente de sua dimensão. Já que as mazelas e friezas do cárcere ultrapassam as muralhas os alçapões de qualquer instituição, e encarceram os projetos e sonhos revolucionários inertes no peito dos oprimidos e militantes.

Onde estamos agora? David Bowie - o eterno camaleão - reaparece!

O romantismo nunca morrerá.
Um dos ícones da cultura pop dos últimos 50 anos reaparece em 2013 com essa pérola musical.
Confiram essa belíssima canção de Bowie que, em tempos de felicidade a todo custo, faz de sua melancólica percepção de mundo, um campo frutífero e interminável, ou pelo menos "as long as there's sun".





Where Are We Now?

Had to get the train
From Potsdamer Platz
You never knew that
That I could do that
Just walking the dead

Sitting in the Dschungel
On Nurnberger Strasse
A man lost in time
Near KaDeWe
Just walking the dead

Where are we now?
Where are we now?
The moment you know
You know, you know

Twenty thousand people
Cross Bösebrücke
Fingers are crossed
Just in case
Walking the dead

Where are we now?
Where are we now?
The moment you know
You know, you know

As long as there's sun
As long as there's sun
As long as there's rain
As long as there's rain
As long as there's fire
As long as there's fire
As long as there's me

As long as there's you

David Bowie - 2013

Invisível íntimo ( escrita automática)

"No mundo cinza, negrume lapso verde cinza, tão cinza quanto o medo sobre a sobra que o mundo imagina, pergunto:

De quem é?
Para quem é? Sol, Terra e nada mais me é caro, raro, sarro, sadismo;
sou tão pérfido quanto o iluminismo, e aí o medo que outrora abraçara-me na morada silenciosa agora jazia mágica nesse lápis de sangue, tormentas, trombetas, a morte não anuncia o mito da clareza, ela torna real e físico o labirinto do medo; tão cedo, quero gemer minha angústia faminta, inacabada, a fome do servo sem senhor, do escravo sem chibatas, do índio sem padre, do operário sem ponto; o medo e a fome de não ter medo; apenas acrescento a estes rabiscos meu mito  de não temer o invisível”

Ari Mascarenhas - Itapecerica da Serra - 2013

DEUS CIBERNÉTICO, JESUS METAFÍSICO E O HOMEM EM COLAPSO - LABIRINTOS DA MORTE

Alguns pios defendem que as reflexões bíblicas e as metáforas nela contidas são atemporais e que não devem ser interpretadas apenas como história. Crenças a parte eis que Philip K Dick, diante das abruptas mudanças que o mundo sofria no séc. XX, promoveu ponderações sóbrias sobre o cristo unificado e até mesmo substituído por um deus capitalista.


A presença de Cristo na obra o Labirinto da Morte (A Maze of death) revela que os conceitos religiosos que vigoraram no ocidente, especialmente nas décadas de 60 e 70, são retomados como nostalgia ou revelados em mentes perturbadas.
Nesta obra, o Rei dos Judeus, é um mero coadjuvante até que seja provada a fé na máquina substituta ou quando os novos conceitos de divindade apresentem falhas. Neste momento, aquele que até então ocupava as linhas marginais da história é retomado com força e interesse pelos céticos e beatos.
No Kibutz, cenário secundário em A Maze of death, o intercessor, alusão explícita a cristo, aparece para poucos, auxilia em tarefas mundanas e dá conselhos. Sua imagem assemelha-se mais a um mago que a um profeta. Entre os personagens ele é um mistério como os politeístas, e entre eles eis que uns juram ter visto, outros acreditam, mas nunca viram, e ainda há outros que não crêem em sua existência e que toda a mitologia criada sobre o seu nome é puramente produto do senso comum.
O cristianismo, assim como outros temas polêmicos da contemporaneidade do autor, é utilizado como plano de fundo nas fantásticas aventuras em tempos longínquos que Philip K Dick trás à tona para sugerir-nos respostas cognitivas a partir de análises concretas em um universo completamente disfórico. Como se esta ausência da realidade fosse a melhor maneira para entendermos o que nos circunda.


A sugestividade dos termos análogos sobre o cristianismo presentes na obra nos conduz as percepções racionais diante das distorções figurativas que os elementos de tempo e espaço promovem em uma breve leitura.
Seguindo o princípio de Berman que afirma “o moderno é uma vida de paradoxos e contradições” (BERMAN 1986), pode-se observar quais contradições e o porquê de cada uma considerando o universo de reflexos de PKD em instantes complexos de sua sanidade ou da sanidade da sociedade em que estava inserido. Os antagonismos sobre o tema geram produtos de construção filosófica que promovem, na obra, ações degradatórias que, segundo Subirats, em sua obra Vanguarda mídia e metrópole, não passam de sublimes transcendências humanas (SUBIRATS 1993).

Philip K Dick enfatiza a discussão sobre o cristianismo em A Maze of death ao teorizar, simbolicamente, concepções cristãs e pós-cristãs em objetos de escrita que fundamentam as doutrinas exibidas e sugeridas. Se considerarmos que, segundo Barthes, não existe linguagem escrita sem rótulo (BARTHES 1953), não poderemos deixar de analisar suas intenções discursivas e, de certa forma, até panfletária para a transformação religiosa e filosófica que o mundo enfrentaria nas décadas correntes.
Dessa forma os pensamentos vanguardistas que fundamentaram a contemporaneidade do autor, suas reflexões religiosas antagônicas a sociedade e sua fundamentação teórica por meio da criação-fictícia de documentos comprobatórios, são as bases teóricas para a leitura dessa obra que vai muito além de puro entretenimento..
O público-alvo das obras de PKD, a juventude, sempre foi o leitor que, confiado de corpo, alma e ideologia nas suas concepções de mundo, deseja transformar e por conta disso, mantém sua horta intelectual exposta e acessível aos atrativos da literatura que exibe um mundo completamente modificado pelos avanços tecnológicos.

PKD pode ser amado ou odiado, mas de forma alguma ignorado.

O labirinto da morte é a metáfora da vida, cujos participantes insistem em buscar o significado fora dela, para dar sentido às suas ações vazias e seus mecanicismos argumentados.

Uma leitura surpreendente e inesquecível.


Agora Jazz!


Agora Jazz!

Beijo do ar em minha face roxa
Estremece-me os lábios sem vida
Enrugando-me as digitais

Ora coração! Que fora sempre tão forte
Agora jaz! 

Não importa o motivo
Se for bala, atropelo ou suicídio,
Se confronto sério ou faíscas banais.

Esse coração que um dia foi norte
Agora jazz!


Tantas vezes pediu silêncio para ouvi-lo
E atenção alguma lhe dispensei.
Tempos que jamais serão iguais

Oh coração! Que outrora impávido e rijo,
Agora jazz! 

Em certos beijos lhe doei
Como prova de um amor incerto.
Feito bibelô de povos ancestrais


Fiz-te isso a um coração de grande porte
E agora jazzzz! 

Hoje gritas em meus olhos,
Pulsa, cospe, sangra a boca.
Remitências, convulsões gerais

És tu coração! Que há pouco tão suficiente
Agora jazzzzz! 

Posto novas notas de confronto
Inconclusas como sonhos
E em meus projetos pessoais

Vives tu coração! Que na palma perdes a vida.
Agora jazzzzzz!
  

Kyle Eastwood, Nat King Cole,
Amstrong, Scatman John.
Elza Soares, Ed Motta, sons vivos n´alma.

Oh nobre coração! Seu ultimo gemido é um grito alucinante
De Mimi Perrin e Winehouse
Agora Jazzzzzzz!



Ari Mascarenhas

A morte tem algo a dizer...




Diante de mais um romance que venceu a barreira dos 100 mil livros vendidos no Brasil pesava-me o histórico das experiências ruins que tive ao ler esse tipo de objeto literário: Livro Comercial.

Sozinho, confesso, jamais atravessaria esse paradigma e permitiria dar ouvidos a uma narradora tão excêntrica e soturna. Precisei do empenho e incentivo de minha namorada para começar. Propus uma leitura em dupla. Juntos avançamos página por página no romance e, à medida que conhecia a vida de Liesel, Max e Hans permiti que a Morte me envolvesse em seu relato e me peguei, não sei exatamente quando, interessado no desenvolvimento da narrativa, ainda com algumas reservas, sobretudo na verborragia da narradora que, de maneira redundante, ganhava tempo e criava uma maior expectativa no leitor. As barreiras foram caindo com o gênero misto, narração e dissertação, desenhando uma linha excitante de expectativa e emoção.

O enredo, sem dúvida nenhuma, é muito interessante, mas poderia se perder facilmente se o autor não contasse com suas notas centralizadas cuja função é restabelecer as ideias de quem narra. Além disso, as tais notas, aumentam a cumplicidade do leitor com a tragédia exposta de um ponto de vista inovador. Ou seja, são muitos os relatos sobre o Holocausto do ponto de vista dos judeus, militares alemães, artistas e até empresários (ver A Lista de Schindler), mas em A menina que Roubava livros, observamos a barbárie do ponto de vista da morte, agindo como testemunha de uma das maiores tragédias da humanidade.

Só o fato de a morte ser a narradora já é inovador, mas as novidades que o livro traz não param por aí. Há também, e para mim o mais importante fator, o objeto da história que aqui, diferentemente dos clássicos romances escritos sobre o nazismo, estabelece seu foco na percepção da guerra sobre o ponto de vista de um bairro pobre, poder-se-á dizer após a leitura, miserável da Alemanha hitlerista.  São os pobres que definham em dias frios e tensos, à espera de uma morte anunciada e alimentados por uma alienação quase sacra.

A história de Liesel é amarrada aos livros que lhe acompanham na vida. Alinhada também as suas experiências como leitora para si e para outros. A palavra que a resgata de sua realidade e quase sempre servem para contornar os desenhos solitários de suas dores expressas na memória de seu irmão, na perda de pessoas queridas e no presente nazista que lhe censura até os mais íntimos desejos de gritar contra seus verdadeiros inimigos.

Confesso que esse livro foi uma deliciosa surpresa, atingindo-me em cheio nos momentos em que o martírio dos judeus é narrado ou subtendido nas expressões caiadas dos alemães que mal tinham o que comer.  A morte, fria e impessoal quase sempre, não toma partido das causas, mas atribui todo o trabalho que a mesma tem durante o livro aos humanos “assustadores”, como ela mesma classifica, em uma reflexão curiosa como tantas outras dispensadas no texto: Não é da morte que devemos temer, ela só cumpre ordens.

O final, que eu já especulava como óbvio no decorrer do romance, foi a surpresa mais marcante de toda a história. Nada que revelarei agora, mas que determinou a característica social do romance. Permitindo-me concluir da seguinte maneira a cerca dos personagens: Os heróis são heróis pelo que fazem no dia-dia e não por um ato ou um evento esporádico.

A emoção com o desfecho é inevitável, mas o livro vale muito mais que algumas lágrimas na quadringentésima página. Trata-se de uma experiência táctil com as mazelas humanas repreendidas ironicamente por uma ignóbil figura, ignorada e desprezada quando seus diálogos se firmam em outros. A conversa com a morte é outra nota memorável de Liesel Meminger.

Marx e eu fomos ao museu (crônica diligente)



Durante a visita que fizemos à Avenida Paulista, Marx e eu, em decorrência da exposição “o moderno da coleção Itaú visita o MASP”, questionei-me, ao apreciar um quadro de Segall, sobre a forma como a arte moderna ganhou espaço na elite brasileira representando, em sua maioria, as vociferações da massa ascendente dos subúrbios e da zona rural. Esta reflexão acentuou-se dada trajetória do modernismo, de sua idealização até a semana da arte moderna, sobre os lares, bares e jardins da burguesia paulistana.
Por alguns instantes, ao contemplar a obra Soltando balão do pintor Ítalo-brasileiro Fúlvio Pennacchi (1946), refleti sobre o sucesso do modernismo sem essa matéria-prima, que oferecemos em abundancia, chamada cultura popular. Seria Possível? Por mais que os modelos vanguardistas apresentassem essa fórmula pronta para o sucesso (uma vez que a elite brasileira louvava tudo o que se considerava arte na Europa) chego a duvidar da grandeza comercial do modernismo com a ausência do pensamento antropofágico, écloga e patriota.
Naquele momento, ainda dentro do MASP imaginei as brilhantes mentes burguesas trabalhando sem o produto popular a fim de oferecer a elite só o que a elite tem e juntos morrerem de fastio e depressão. Ainda que este produto fosse importado, a mesmice atravessaria o oceano e restariam apenas os frios metais do café que coriscavam as boetas niqueladas dos barões capitalistas. 
Dias depois fomos à casa de Segall, que hoje graças a seus filhos tornou-se um importante museu da capital. Lá, deparei-me com detalhes de seu ateliê, das dependências de sua luxuosa moradia e com um quadro que me chamou bastante atenção, dada a aparente experiência biográfica do artista na epiderme da pintura. O quadro se chama Navio de emigrantes. Nesta obra, o artista, faz uma coletânea de sua vivência nas inúmeras viagens que fez durante sua vida itinerante pelo mundo.
O retrato não expõe as paisagens, as belas instalações das embarcações, ou ainda, os portos cheio de gente com bandeirinhas nas mãos; o quadro representa aquilo que nos é de mais atual, a maneira precária como a espécie humana é transportada em alguns lugares, e o que difere o bom do mau transporte.
Estou certo que poucos da elite burguesa atual sabem da verossimilhança deste quadro com a realidade urbana brasileira. O Navio de emigrantes, o caos que os pobres, ou melhor, emergentes de acordo com a política americana para o século XXI, sofrem naquilo que o sistema chama de “transporte público”.
Toda a minha reflexão que se iniciou diante do quadro Soltando Balão, que exibe a festividade popular, passou pela trágica condição que o sistema impõe aos verdadeiros vetores da economia emergente e chegou à conclusão que responde a questão inicial.
As fotos de B.J.Duarte são espelhos do espaço urbano que em breve estaria completamente modificado, em alguns momentos para atender a demanda, mas na maioria das vezes para mascarar a diferença social crescente em nosso país. Essas fotos serviram-me para concluir meu pensamento sobre o eixo horizontal que ascende do marco zero cartesiano criado para compreender o modernismo com a participação do povo e o modernismo sem a participação popular.
Mario de Andrade, Tarsila, Oswald, Cavalcanti e tantos outros expuseram o Brasil para que o Brasil pode-se ver. Ou seja, apenas as técnicas, a proposta revolucionária, o bom exemplo das vanguardas e o apoio dos separatistas não bastariam para eternizar a estética moderna. Este movimento nos ensinou que o moderno é fundamentado em uma fórmula antiga, que antecede os conceitos de república, capitalismo e lutas sociais; a posologia que levou o modernismo ao sucesso esta embasada nos conceitos humanistas que a burguesia, por conta de sua preocupação em enriquecer, precisa buscar na simplicidade do proletariado. 
De volta à Rebouças, Marx me deixou escorregar sozinho para o silêncio de meus sonhos e babas na janela do coletivo.


Ari Mascarenhas