Matrix e o modernismo ( correlações interpretativas)


A cena do filme Matrix (1999), em que a personagem Morpheu apresenta as pílulas ao protagonista Neo, se desenrola com a chegada desse segundo a uma sala com um certo ar obscuro e misterioso, tal como o que se revelará naquele recinto. Em seguida, Morpheu revela a Neo que reconhece a sua surpresa e sua curiosidade em relação ao que está acontecendo. Para ilustrar melhor o acontecimento, Morpheu usa como metáfora o enredo de “Alice no País das Maravilhas” (Lewis Carrol, 1865), sobretudo no trecho em que a garota, ainda atordoada de um sono profundo, se depara com um coelho com um relógio na mão pedindo para que ela o siga. Seguir o coelho aqui é se permitir adentrar no mundo das revelações.

Então, Morpheu  faz uma breve apresentação parcial do que é a Matrix, destacando que toda a realidade que permeia a vida que Neo conhece é na verdade um espectro falso, criado para escravizar e aprisionar aqueles que nela vivem. Na sequência da cena, eis a oferta de libertação. Morpheu oferece, numa clara alusão ao “livre arbítrio” cristão, a opção de Neo continuar vivendo a ilusão projetada na Matrix, tomando a pílula azul, ou se libertar e vivenciar a realidade em uma ótica mais profunda e, portanto, mais real. Para isso, ele precisa tomar a pílula vermelha. Neo escolhe a segunda opção, mas não sem antes ser alertado por Morpheu de que essa escolha não tem volta. A cena se encerra com Morpheu saindo do recinto e, tal como o coelho de Alice, chamando Neo para que o acompanhasse no universo que estava na iminência de se revelar.


Para além das inúmeras referências cristãs que a cena traz, como a já mencionada citação do “livre arbítrio”, a presença de “Trinity” ( a “Santíssima Trindade”) e das cores da pílula (vermelho – a mesma cor da fruta do conhecimento em Gênesis), a cena pode ser interpretada em outras esferas da vida humana, sobretudo no que se refere a arte.

O mundo Moderno, que se instaurou com a queda das nobrezas europeias e a ascensão burguesa no final do século XVIII, foi concebido por intermédio de uma série de pensamentos questionadores que culminaram na compreensão de que a Liberdade e a igualdade eram direitos de todos os seres humanos. Essa série de pensamentos que permeou tanto campos filosóficos, religiosos e até artísticos foi denominada de Iluminismo.


O pensamento iluminista sempre valorizou a expressão artística como forma de compreender a realidade e discuti-la. Contudo, os poderes concentrados nas novas elites fizeram com que o projeto de “mundo moderno” se tornasse, ainda no século XIX obsoleto e cruel com a maior parte da população europeia. Enfim, vieram os avanços científicos e com eles novas perspectivas do pensamento humano se desenvolveram. A arte, cuja natureza principal é o questionamento, também rompeu com as amarras românticas, idealizadas, e propôs, para além do culto à forma, um espaço de reflexão, de questionamento, ou ainda de libertação.

Esses movimentos artísticos foram denominados de “Vanguardas” e sua consolidação no início no século XX, sobretudo ao usurpar as formas literárias já tradicionais ( o romance e a lírica) formatou a escola moderna. Contudo, para compreender uma obra moderna, com seus questionamentos, com suas inquietações, com suas propostas revolucionárias, com suas estéticas, com suas releituras históricas e principalmente com sua libertação das amarras de modelos já consolidados e opressores, é necessário tomar a pílula vermelha.

A pílula vermelha é aquela que te liberta da alienação, que te permite reconhecer o rompimento das expressões e reforçam os elementos das impressões( Expressionismo). É aquela que te permite filtrar as propostas do futuro de forma a afastar toda e qualquer possibilidade de retorno aos modelos totalitários e opressores (futurismo). É aquela que propõe um olhar artístico até onde não se tem arte ( no amor, ou no elevador) reconhecendo que o artístico está na inutilidade primitiva do objeto (dadaísmo).Ou ainda, na melhor parte dela, é o rompimento total da censura da forma permitindo que sua mente e seu corpo naveguem livremente por todos as dimensões da realidade (surrealismo).

Enfim, a pílula vermelha não tem volta, porque uma vez libertado da alienação social, política, consumista, individualista e formal, não há mais volta. O indivíduo jamais se deixará aprisionar sem cogitar, em algum momento, a possibilidade de se rebelar.

O modernismo é o movimento cultural que envolve todas essas premissas e, consequentemente, reestrutura o pensamento literário fazendo com a arte sirva a um propósito cada vez mais claro e libertador: QUESTIONE! Pois assim, seguindo sempre o coelho da curiosidade e da inquietação, você poderá alcançar sempre o novo, e ser o seu próprio NEO!