A morte tem algo a dizer...




Diante de mais um romance que venceu a barreira dos 100 mil livros vendidos no Brasil pesava-me o histórico das experiências ruins que tive ao ler esse tipo de objeto literário: Livro Comercial.

Sozinho, confesso, jamais atravessaria esse paradigma e permitiria dar ouvidos a uma narradora tão excêntrica e soturna. Precisei do empenho e incentivo de minha namorada para começar. Propus uma leitura em dupla. Juntos avançamos página por página no romance e, à medida que conhecia a vida de Liesel, Max e Hans permiti que a Morte me envolvesse em seu relato e me peguei, não sei exatamente quando, interessado no desenvolvimento da narrativa, ainda com algumas reservas, sobretudo na verborragia da narradora que, de maneira redundante, ganhava tempo e criava uma maior expectativa no leitor. As barreiras foram caindo com o gênero misto, narração e dissertação, desenhando uma linha excitante de expectativa e emoção.

O enredo, sem dúvida nenhuma, é muito interessante, mas poderia se perder facilmente se o autor não contasse com suas notas centralizadas cuja função é restabelecer as ideias de quem narra. Além disso, as tais notas, aumentam a cumplicidade do leitor com a tragédia exposta de um ponto de vista inovador. Ou seja, são muitos os relatos sobre o Holocausto do ponto de vista dos judeus, militares alemães, artistas e até empresários (ver A Lista de Schindler), mas em A menina que Roubava livros, observamos a barbárie do ponto de vista da morte, agindo como testemunha de uma das maiores tragédias da humanidade.

Só o fato de a morte ser a narradora já é inovador, mas as novidades que o livro traz não param por aí. Há também, e para mim o mais importante fator, o objeto da história que aqui, diferentemente dos clássicos romances escritos sobre o nazismo, estabelece seu foco na percepção da guerra sobre o ponto de vista de um bairro pobre, poder-se-á dizer após a leitura, miserável da Alemanha hitlerista.  São os pobres que definham em dias frios e tensos, à espera de uma morte anunciada e alimentados por uma alienação quase sacra.

A história de Liesel é amarrada aos livros que lhe acompanham na vida. Alinhada também as suas experiências como leitora para si e para outros. A palavra que a resgata de sua realidade e quase sempre servem para contornar os desenhos solitários de suas dores expressas na memória de seu irmão, na perda de pessoas queridas e no presente nazista que lhe censura até os mais íntimos desejos de gritar contra seus verdadeiros inimigos.

Confesso que esse livro foi uma deliciosa surpresa, atingindo-me em cheio nos momentos em que o martírio dos judeus é narrado ou subtendido nas expressões caiadas dos alemães que mal tinham o que comer.  A morte, fria e impessoal quase sempre, não toma partido das causas, mas atribui todo o trabalho que a mesma tem durante o livro aos humanos “assustadores”, como ela mesma classifica, em uma reflexão curiosa como tantas outras dispensadas no texto: Não é da morte que devemos temer, ela só cumpre ordens.

O final, que eu já especulava como óbvio no decorrer do romance, foi a surpresa mais marcante de toda a história. Nada que revelarei agora, mas que determinou a característica social do romance. Permitindo-me concluir da seguinte maneira a cerca dos personagens: Os heróis são heróis pelo que fazem no dia-dia e não por um ato ou um evento esporádico.

A emoção com o desfecho é inevitável, mas o livro vale muito mais que algumas lágrimas na quadringentésima página. Trata-se de uma experiência táctil com as mazelas humanas repreendidas ironicamente por uma ignóbil figura, ignorada e desprezada quando seus diálogos se firmam em outros. A conversa com a morte é outra nota memorável de Liesel Meminger.

Marx e eu fomos ao museu (crônica diligente)



Durante a visita que fizemos à Avenida Paulista, Marx e eu, em decorrência da exposição “o moderno da coleção Itaú visita o MASP”, questionei-me, ao apreciar um quadro de Segall, sobre a forma como a arte moderna ganhou espaço na elite brasileira representando, em sua maioria, as vociferações da massa ascendente dos subúrbios e da zona rural. Esta reflexão acentuou-se dada trajetória do modernismo, de sua idealização até a semana da arte moderna, sobre os lares, bares e jardins da burguesia paulistana.
Por alguns instantes, ao contemplar a obra Soltando balão do pintor Ítalo-brasileiro Fúlvio Pennacchi (1946), refleti sobre o sucesso do modernismo sem essa matéria-prima, que oferecemos em abundancia, chamada cultura popular. Seria Possível? Por mais que os modelos vanguardistas apresentassem essa fórmula pronta para o sucesso (uma vez que a elite brasileira louvava tudo o que se considerava arte na Europa) chego a duvidar da grandeza comercial do modernismo com a ausência do pensamento antropofágico, écloga e patriota.
Naquele momento, ainda dentro do MASP imaginei as brilhantes mentes burguesas trabalhando sem o produto popular a fim de oferecer a elite só o que a elite tem e juntos morrerem de fastio e depressão. Ainda que este produto fosse importado, a mesmice atravessaria o oceano e restariam apenas os frios metais do café que coriscavam as boetas niqueladas dos barões capitalistas. 
Dias depois fomos à casa de Segall, que hoje graças a seus filhos tornou-se um importante museu da capital. Lá, deparei-me com detalhes de seu ateliê, das dependências de sua luxuosa moradia e com um quadro que me chamou bastante atenção, dada a aparente experiência biográfica do artista na epiderme da pintura. O quadro se chama Navio de emigrantes. Nesta obra, o artista, faz uma coletânea de sua vivência nas inúmeras viagens que fez durante sua vida itinerante pelo mundo.
O retrato não expõe as paisagens, as belas instalações das embarcações, ou ainda, os portos cheio de gente com bandeirinhas nas mãos; o quadro representa aquilo que nos é de mais atual, a maneira precária como a espécie humana é transportada em alguns lugares, e o que difere o bom do mau transporte.
Estou certo que poucos da elite burguesa atual sabem da verossimilhança deste quadro com a realidade urbana brasileira. O Navio de emigrantes, o caos que os pobres, ou melhor, emergentes de acordo com a política americana para o século XXI, sofrem naquilo que o sistema chama de “transporte público”.
Toda a minha reflexão que se iniciou diante do quadro Soltando Balão, que exibe a festividade popular, passou pela trágica condição que o sistema impõe aos verdadeiros vetores da economia emergente e chegou à conclusão que responde a questão inicial.
As fotos de B.J.Duarte são espelhos do espaço urbano que em breve estaria completamente modificado, em alguns momentos para atender a demanda, mas na maioria das vezes para mascarar a diferença social crescente em nosso país. Essas fotos serviram-me para concluir meu pensamento sobre o eixo horizontal que ascende do marco zero cartesiano criado para compreender o modernismo com a participação do povo e o modernismo sem a participação popular.
Mario de Andrade, Tarsila, Oswald, Cavalcanti e tantos outros expuseram o Brasil para que o Brasil pode-se ver. Ou seja, apenas as técnicas, a proposta revolucionária, o bom exemplo das vanguardas e o apoio dos separatistas não bastariam para eternizar a estética moderna. Este movimento nos ensinou que o moderno é fundamentado em uma fórmula antiga, que antecede os conceitos de república, capitalismo e lutas sociais; a posologia que levou o modernismo ao sucesso esta embasada nos conceitos humanistas que a burguesia, por conta de sua preocupação em enriquecer, precisa buscar na simplicidade do proletariado. 
De volta à Rebouças, Marx me deixou escorregar sozinho para o silêncio de meus sonhos e babas na janela do coletivo.


Ari Mascarenhas