Relendo a história da humanidade



O romance em questão aborda diversas possibilidades de aproximação entre os textos religiosos, os propósitos nazistas e os contos de Borges. O protagonista, homônimo do grande escritor argentino, decide matar o grande nome da literatura de seu país no século XX, e para isso, rememora os motivos que vão além de um ciúme ou de uma vida ofuscada por ter o mesmo nome que alguém famoso. Aliás, o protagonista é também um escritor. De menor envergadura, é claro. O que motiva vingança é a morte de milhares de judeus durante a segunda guerra, que de acordo com o romance, é motivado por uma interpretação forçosa e descompromissada de um conto borgeano.
Além de bem escrito o texto apresenta argumentos convincentes e se posiciona como uma crítica às famosas “teorias da conspiração”. O autor imputa nas bases das reflexões nazistas (ainda durante as reuniões dos Tulas) um personagem que fora o grande responsável por motivar e acender a fúria dos alemãs contra os judeus. Esse facínora seria Borges. Mas um a “borges” muito próximo de Pierre Menard, um “borges” leitor, que recepciona a obra de seu homônimo e a decodifica a seu bel-prazer, primeiro por dinheiro, depois para ficar perto da mulher que ama, Raquel, depois por sobrevivência... em todas as situações ele, que é a presença do Outro no romance, deixa de revelar sua verdadeira identidade para atender a uma necessidade imediata. Ele, Borges, cujo nome e a trajetória fazem parte de um destino inexplicável sabe que sua grande maldição é ser uma extensão (a prática da teoria do autor famoso) do Outro.
Adorei o romance, porque também sou leitor de Borges, mas creio que aqueles que não conhecem os contos mencionados no livro, ficaram um tanto quanto perdidos em algumas explicações.
Ainda assim, o autor foi muito feliz em sua criação e por ora nos faz acreditar que a leitura mística de Borges em relação à história é uma grande irresponsabilidade do escritor argentino. No entanto, o ultimo capítulo que concentra uma epístola de Borges para Borges revela a máxima do livro. Diante do túmulo, a imagem do corpo presente e da morte que encerra as possibilidades, Borges (o homônimo) entende que tudo é uma simples interpretação e, segundo o escritor, uma grande perda de tempo. Viver o presente, sem buscar significados no passado, requer “coragem”.

Nota de Leitura - Memória de minhas putas tristes



Aquele que se acostumou a ler os “épicos garcianos”, que consagraram o escritor colombiano, sentirá falta de algo neste breve romance. Sobretudo no que se refere à construção das perturbadas personagens de Cem anos de Solidão ou ainda da monomania amorosa de Amor em tempos de Cólera.
O breve relato do idoso narrador em Memória de minhas putas tristes esboça uma vitalidade psíquica que pouco dialoga com o velho José Arcádio Buendia, fundador de Macondo, que fora amarrado em um tronco de árvore e faleceu praticamente esquecido pela família e outros moradores do vilarejo. Aqui, o velho sem nome, que atende pela alcunha de “Sábio”, escreve uma coluna semanal de sucesso em um jornal da cidade e possui a plena ciência de seus atos. Ou seja, esse velho pouco se assemelha aos antigos “heróis” de Marques. À medida que a leitura se desenvolve sentimos falta de uma descrição mais pormenorizada de sua história, de seus descaminhos... O pouco que se revela se instala na narrativa por meio de flashes narrativos sem o mergulho comum em seus textos.

Contudo o traço garciano na descrição espacial continua marcante e sinestesicamente impactante, como sempre.  O sufoco provocado pelo calor, o odor dos cantos e as carnes que exalam suas essências empestam as descrições do ambiente. Continua-se a necessidade de lê-lo com uma garrafa de água por perto.
Outro traço recorrente em suas obras e que surge com força em Memória de minhas putas tristes, é a presença de uma importante figura em suas tramas: A alcoviteira.
Em Cem anos de Solidão, Pilar Temara serve às várias gerações da família do protagonista e ainda exerce uma influente participação no enredo ao ser a única testemunha ocular da ascensão e queda dos Buendías.  No ótimo Amor em tempos de cólera, é a própria Sra. Tránsito Ariza, mãe do protagonista, que executará a importante missão de servir-lhe com mulheres que apaziguarão suas dores oriundas de um amor não correspondido.
Neste ultimo romance de Gabriel Garcia Marques, Rosa Cabarcas é, além da cafetã que costura toda a trama envolvendo o “Sábio” durante sua segunda metade de século, a única amiga e conselheira do herói do romance. Reforça-se aqui essa marca irremediável deste escritor que constrói, em suas alcoviteiras, personagens cuja lucidez e filosofia - embasadas nas experiências de vida - iluminam , acolhem , protegem e salvam os homens que quase sempre são representantes de importantes figuras da sociedade.
E a alcoviteira se faz ainda mais necessária já que o autor insiste em reforçar a virilidades de seus protagonistas, em contraste com imagens físicas por vezes decadentes e a espera da morte.
Enfim, traços importantes saltam da tela tipicamente colombiana que Marques pinta e que seus caráter breve nos deixa uma sensação triste e amarga de que faltou fôlego.
Aquele fôlego narrativo que o próprio autor nos acostumou durante as inesquecíveis viagens que seus romances de outrora nos proporcionou.
Faltou mais Garcia Marques nesta curta obra que nos deixa ainda mais tristes porque sabemos que curto também foi seu tempo de produção, se consideramos o tempo comum dos escritores de sua geração- De La Hojarasca (1955) até Memória de minhas putas tristes (2003) são apenas 48 anos- um produção rica, mas breve em minha opinião. Queira deus que eu esteja errado.  E que não seja esse seu ultimo suspiro literário, pois quem se acostumou com as epopeias dos amores abrasadores perpetuados nas obras anteriores, não se contenta com esse breve coito que a Memórias de putas tristes nos ofereceu.

Ari Mascarenhas – 13/12/13