Morrendo de Amor


Certo!
Quer falar de amor?
Quer falar do ser?
E ser o que o amor deseja?

Certo!
Façamos!

Digo que vivi grandes paixões
Que viraram grandes tolices

E as paixões, travestidas de amor, fecundaram grande angústia quando se revelaram passageiras.
Sozinho, toda vez que um verão passava, eu me perguntava: Isso foi amor?

Meu ingênuo coração triste, minha frágil existência se contorcia a cada canção que lembrava os beijos dela.

De íntimo ferido entregava-me a cada crepúsculo;
E sorvia dentro de mim um prazer amargo, bílis.
Matando-me diariamente.
Até o dia em que um adulto me disse: - Você cresceu meu menino!
E hoje, sério e racional com as coisas do coração,
Sinto tanta falta do tempo em que qualquer paixão, por menor que fosse, me fazia morrer de amor.



Ari Mascarenhas                                                     

Amar é desarmar


Eram flores ideológicas, se fizeram pétalas perfumadas.
Eram ascos sonoros, se fizeram recepções respeitosas.
Eram gritos profanos, se fizeram sussurros prudentes.
Era tão desumano, mas sempre com uma retórica caprichosa.

Era armado, pronto pra batalha.
Armado e vergado, como uma arapuca de cipó.
Seco e alinhado, numa trilha de um tatu qualquer.
Resistente a vendavais, chuvas e tropeços desatentos de humanos dispersos.
Forte, rijo, geométrico; bem ali, no meio do caminho.

Mas tanta resistência não foi suficiente para um sopro de amor,
Um sopro simples, leve e afônico.
Um sopro de harmonia divina e cintilante.
Que chegou sorrateiro em um dia

Um dia-amante, um diamante.

Desses que nos assaltam e projetam novos tempos,
Num único instante, num único olhar.
Um dia que o sol não fora protagonista.
E de lá pra cá tudo o que era velho se esvaio,
deixando um grande vale para nosso plantio.



Verdejantes mantos que nos aqueceram
Na eternidade de nossos sentimentos.



Foi por terra valores empapados,
Empecilhos de um tempo de poeira
Necessidade de se desarmar de velhas crenças
Para amar de forma verdadeira.


Ari Mascarenhas

Aos poucos ELE se apresenta e as Pedras Rolam (Rolling Stones)*. - Uma breve leitura do romance "O mestre e Margarida" de Mikhail Bulgákov


Acabo de ter uma aula com o professor Wolland e tenho algumas coisas a dizer. ...


Quando peguei em mãos a obra “O Mestre e Margarida” de Mikhail Bulgákov (1891-1940) estava preparado para ler uma crítica ferrenha ao “comunismo” russo conforme haviam me indicado.  Por conta de minhas ideologias de esquerda a leitura dessa obra seria um grande desafio, pois, ainda que eu me considere uma pessoa aberta às críticas, é certo que elas precisam vir acompanhadas de bons argumentos, do contrário, eu abandonaria o livro nas primeiras páginas. Mas, ainda no primeiro capítulo, quando o professor é apresentado ao crítico e ao poeta, fiquei certo de uma coisa: Não se tratava de um romance que criticaria o regime soviético, mas sim uma crítica à corrupção humana, independente de sua opção política.
Edição 2009
O livro pode ser classificado como realismo fantástico em partes. Quero dizer, ao tempo em que vislumbramos uma descrição profunda do narrador e uma tentativa de ambientalisar a narrativa na sociedade moscovita do início do século XX, ele nos carrega, de maneira delirante, ao universo paralelo da fantasia e do surrealismo, sempre dotado de uma criticidade ácida aliviada por uma animação simbólica que remonta cenários da Disney e dos irmãos Grimm.
NOTA: Se o leitor dessa singela nota quiser conhecer o enredo do romance, sugiro que o leia. Afinal, ninguém é mais apropriado para lhe contar isso que o próprio Bulgákov. O que pretendo expor nessas linhas é uma interpretação do que me foi apresentado pelo autor. 
Já nos primeiros capítulos é possível notar a impotência das ideologias humanas, manipuladas de acordo com o interesse dos políticos, diante da sagacidade do Demônio. Sobretudo porque ele não dispõe de armas celestiais ou argumentos infalíveis capazes de convencer a humanidade de suas verdades, mas sim porque ele usa a maior de todas as forças contra o homem, cuja potência, ao ser demonstrada, é reconhecida, a princípio, como inacreditável, insuperável, maravilhoso e, portanto, invencível: A farsa.
Mikhail Bulgákov
As peripécias do Demônio acabam por revela-lo a todos aqueles que cruzam seu caminho e que atônitos passaram o resto de suas vidas traumatizados pela perturbadora sensação de que ele jamais os deixará. Satanás é um espelho. Na obra ele surge como um mago, incita os homens e realiza desejos. No entanto, tais realizações são tão frágeis quanto o caráter dos felizardos.  Wolland, o professor demoníaco, e seu séquito escolhem suas vítimas na maquiada sociedade socialista, cuja adesão ao regime se dá muito mais pelo medo que pelo compromisso com a causa, e os instiga a derrubarem suas máscaras e revelarem a pérfida alma egoísta que habita cada um. Ninguém, absolutamente ninguém, resiste aos dólares, às roupas parisienses, a luxúria e a oportunidade de satisfazerem seus impulsos de consumo.  Mesmo que isso signifique uma declaração de ódio à causa comunista. E assim, os camaradas vão caindo. Não diante do irreal ou do fantástico “Ser” que surge numa tarde quente de Moscou, mas sim, diante do Demônio que sempre estivera instaurado dentro de si.
Os heróis da trama são justamente “O Mestre” e sua amada “Margarida” que, aliam-se ao Demônio não por suas almas fétidas e sandias, mas, ao contrário, pela pureza e verdade de seus sentimentos.  O primeiro, por romancear a vida de Pôncio Pilatos, recebe como punição a indiferença da sociedade intelectual e críticas que o eliminam do cenário cultural bolchevique. Na impossibilidade de prever outros caminhos, que na verdade não haviam, ele enlouquece e queima sua obra, desagradando profundamente sua amada, Margarida, que por sua vez é casada e vive uma vida de prestígio ao lado de um rico russo numa sociedade de “iguais”. Diante do seu quadro de aparente loucura, o Mestre é encaminhado ao hospício pois, além da impossibilidade de viver sem sua amada, acaba por afirmar que conhecera o Diabo. Margarida, na busca incessante para reencontrar seu Mestre querido, sucumbi a tentação de Satanás e, por amor, aceita abrir mão de toda e qualquer aparência social em busca do seu objetivo.  Duas almas puras que a corrupção humana, violentamente, separara em nome de interesses mesquinhos, na defesa de uma causa de adesão falsa. Para o Mestre e Margarida Satanás não se mostra austero, não assusta e muito menos representa o Mal. Isso porque a realidade de suas vidas, antes do mágico encontro com Wolland, era bem mais assustadora.
Pilatos e a primeira audiência de Yeshua
Paralelo ao enredo carregado de símbolos que revela as relações corrupta da sociedade, há a revisão histórica da vida de Pilatos e Mateus Levi. O apóstolo, acusado por Cristo de ser um falso marqueteiro de seus feitos, destaca-se pela sua fidelidade e resignação aos propósitos de Yeshua. Nessa releitura, Pilatos surge como alguém que fez o possível para que Jesus não fosse condenado, por entender que esse não oferecia nenhum mal aos interesses de Roma, e que a decisão de Caifás, um corrupto religioso da época, era irresponsável, já que condenaria a morte um homem sem crimes para satisfazer sua leitura arbitrária e equivocada de Davi. Yeshua, com sua simplicidade e retórica, perturbou Pilatos por muitos anos. O procurador, assim que Pôncio é chamado em grande parte do romance, não teria mais paz, mesmo depois de sua morte, que aliás nunca fora mencionada. 
A Moscou, repleta por corruptos como Caifás, agora revivia o embate entre Pilatos e Levi. No passado, o procurador ofereceu a Matheus a liberdade e a realização de todos os seus desejos e recebeu do discípulo um categórico NÃO. Matheus estava decidido a redimir-se do mal feito ao seu Mestre com devoção incorruptível. Este ato aprofunda ainda mais Pôncio na melancólica e efêmera cova aberta de sua alma. No reencontro, Levi pede a Wolland que leve os heróis com ele, pedido atendido com prazer pelo Demônio, pois, depois de tanto tempo, a alma pura e sincera daqueles jovens, flutuava acima do ar contaminado moscovita, assim como pura era o semblante, o coração e a memória de Yeshua. Ou seja, aqueles amantes deram a Pilatos a possibilidade de sua redenção. Salvá-los foi a sua contribuição para os desígnios de Jesus que, como retribuição, deu ao Mestre e a Margarida o poder de libertá-lo.
A obra é carregada de símbolos cuja interpretação requer anos de análise, talvez por isso esse livro, mesmo depois de tanto tempo escrito, carregue em si a áurea dos grandes clássicos.
Dentre os inúmeros personagens de destaque do romance, gostaria, para finalizar, de falar brevemente de um que chamou muito minha atenção. Trata-se de Artchibald Artchibádovitch cuja admiração do narrador parece não ter fim. Personagem de grande importância para a engrenagem do sistema social, respeitado pelos intelectuais e políticos de Moscou, é proprietário de um restaurante na Sandovia, importante avenida moscovita, conhecido por reunir a nata da sociedade socialista. Esse personagem surge em dois momentos e apresenta práticas curiosas. Na primeira ele humilha um funcionário e o constrange na frente de todos, revelando sua autoridade e violência, sem abalar, contudo, a admiração dos outros e do narrador. No segundo momento, próximo ao desfecho do romance, ele flerta com Korôviev e Behemoth, membros da trupe do Demônio, e os auxilia na destruição do restaurante, sem deixar suspeitas sobre si, fugindo do local de destruição com um breve sorriso no rosto e ainda sendo admirado por todos. Esse Artchibald Artchibádovitch é uma figura emblemática. Pois mesmo diante de tantas agressões claras aos interesses do Partido Comunista, mesmo diante de auxílio aos estrangeiros que fulminaram a racionalidade dos “camaradas”, ele ainda é reconhecido como um grande homem, um admirável cidadão, um alguém acima de qualquer suspeita.
Satanás respeita Artchibald porque vê nele um ser que de tão escrachado em suas atitudes macabras acaba por cegar aos seus próximos, como se fosse um anjo caído, que ninguém jamais presenciou a queda. Quantos desses não conhecemos entre nós? E por que nunca são pegos? Depois de ler o livro comecei a achar que eles talvez tenham mesmo um pacto.
Concluo, com minha leitura, que a crítica de Bulgákov não é mesmo ao ideal comunista, ou ainda aos pensamentos de Marx, como alguns maldosos capitalistas presumem ao resenharem o livro. Trata-se de um modelo de sociedade corrupta que se revela viva e crescente nos espaços onde o Demônio, com seus fetiches e prazeres, corrompe milhares de almas diariamente e que infesta as crenças em ideologias transformadoras ao desvirtuar e marginalizar os poucos humanos que ainda acreditam em Deus. Para um ateu convicto como eu, a conclusão de uma leitura orientada por termos como “Diabo” e “Deus” não parece muito coerente, então lhe peço, leitor benévolo, que substitua esses verbetes, aqui registrados, por “Capitalismo” e “Amor”. Não tenho aqui a pretensão de dizer verdades ou mentiras, é só uma opinião de um jovem leitor que acabou de tomar um suco de damasco com espuma, e que entorpecido pela madrugada fria na serra, decidiu encerrar suas elucubrações e descansar. A distância ouço alguns soluços, silêncios da noite e a voz quente do professor Wolland:
- A aula acabou!
  
Itapecerica da Serra, 05 de Agosto de 2014


*A banda Rolling Stones se inspirou nessa obra para a composição de um de seus maiores clássicos Sympathy For The Devil.

Soneto



Volto ao poema e ao canto.
Gorjeio em letras imprecisas.
Teço pra ti esta veste e tanto
laureio pelo biênio de guarida.



Você que mil beijos macios
guardou nos meus lábios de relevos
turvados, delgados e sandios...     
notas breves, ária e enredos.



Guardo um invólucro delicado
cravado em mim naquele dia
...de seu toque, seu cuidado.



Grandes e perpétuas profecias
cunham em ouro cintilado
...nesse sonho de sua autoria.



Ari Mascarenhas

O Processo - O mistério é o meio.

Uma breve leitura da obra O Processo de Fraz Kafka


Um romance complexo e instigante que aponta para uma distopia orientada por uma legislação indecifrável, ou melhor, apenas sugerida, já que nada no romance se estabelece como palpável, certo ou realizável. Um labirinto de possibilidades manipuladas cuja burocracia e a subjetividade são as bases de um processo insolúvel.

A vertigem do enredo alcança seu ápice, a meu ver, na cena em que o advogado revela como a burocracia beneficia os habitantes do “olimpo” moderno, numa sociedade mantida por leis. A revelação se dá de forma caricata e surreal, como quase todas as imagens do romance, a fim de reforçar os exageros e absurdos do sistema capitalista. Na cena em questão, o advogado, já enfermo e deitado em sua cama, faz com que um rico empresário que, assim como o protagonista sofrera um processo “sem pé nem cabeça”, ajoelhe-se diante dele e implore por “informações” sobre sua situação frente ao judiciário.

Aliás, informação é a grande moeda de troca no romance. Por vezes negociada com favores sexuais, prestígio e reconhecimento. O dinheiro parece ter pouco valor. A informação só perde para o medo, no quesito interesse. O medo de ser processado é o que, frequentemente, movimenta as personagens na trama. Todos sabem, em alto ou baixo grau, o desespero de Joseph K., haja vista que o temor de sofrer um processo, cujas informações ficam monopolizadas por funcionários e juízes inacessíveis gerando uma quase condenação prévia, é geral.

A grandeza da obra está, sem dúvida, na sua atemporalidade. As poucas marcas temporais do romance não são confiáveis, pois o próprio narrador se esforça em confundi-las. Vale-se aqui a ideia de que essas marcas, confusas ou não, apontam unicamente para o decorrer da narrativa. Não há absolutamente nada que enquadre o romance em um período histórico qualquer. Exceto na descrição espacial e social da obra.
A combinação entre as descrições de uma cidade dividida entre região central rica e periferia pobre, denota uma divisão moderna típica das megalópoles capitalistas. Além disso, há o trabalho no banco (cuja divisão hierárquica corresponde a um formato mais aproximado do século XX – Divisão, diretoria, escritório, contínuos, etc.), e automóveis, que a presença por si só aponta para o século mencionado acima. Contudo, são apenas essas distinções temporais que podemos fazer. O que permite com que as discussões do romance possam se situar, tranquilamente, em ambientes mais próximos da nossa realidade.

Enfim, trata-se de um romance psicológico que instiga o leitor não pelas suas revelações, mas sim pelos mistérios. Um baile de indefinições, ironias e insinuações perversas que, ao final, não deseja caracterizar as alucinações de Joseph K., mas apenas escancarar a estranha, odiosa e desorganizada máquina usada para maquiar nossa sociedade com uma bela imagem de Ordem, a fim de nos fazer acreditar que esse é o modelo ideal para chegarmos ao tão desejado progresso da humanidade.


Ari Mascarenhas 19/07/2014

Segundos


Um breve olhar para os sentimentos pulsantes dos discentes dos “segundos” médios, de 2013, do colégio Morumbi Sul.

“Mande trazer com o que escrever, quando já estiver colocado no lugar mais favorável possível para concentração do seu espírito sobre si mesmo. Ponha-se no estado mais passivo, ou receptivo, dos talentos  de todos os outros. A literatura  é um dos mais tristes caminhos que levam a tudo”.  Breton – Manifesto do Surrealismo 1924)


"Um exercício de escrita automática revela instantes". Essa é a única afirmação racional que se pode fazer de um texto tão impulsivo e subjetivo como o que propomos trabalhar. Não se trata de um produto do intelecto, de um objeto enquadrado nas normas gramaticais e tampouco preocupado com tais regras; trata-se do despertar anímico, um grito impulsivo de nossos instintos, uma marca do impacto entre o universo sensitivo e o mundo dos sentidos. Um instantâneo da alma. Um resgate aos momentos em que o desregramento era nossa maior liberdade, ainda que não tivéssemos consciência dela. O retorno ao lúdico, ao natural, ao instintivo... conduzido por palma e dedos desgovernados que cravam no papel letras, rabiscos, sinais...signos e símbolos.
É mesmo um instante mágico.
Agora imagine quando essa magia se manifesta dentro de uma sala de aula, com alunos do segundo ano médio, durante cinco inesquecíveis minutos, que conseguem expor e registrar os impulsos apaixonados de corações tão distintos e ávidos por manifestação. Imaginou? Cinco minutos são trezentos segundos de liberdade que a escrita automática trouxe a esses jovens, são trezentos segundos em que eles foram instigados a permitir que suas mãos, cansadas de tantos afazeres acadêmicos, deslizassem no papel e formatassem naquela folha uma imagem que representasse, sem a intenção, uma perene viagem para fora de todo e qualquer universo regrado. Trezentos segundos para que cada um, naquela sala, pudesse derramar em sua carteira, sem medo da censura moral ou linguística, seus medos, anseios, desejos, crenças, sonhos, incômodos... Enfim, trezentos segundos sem más-caras. E aqueles que optaram por continuar com as regras, tinham a liberdade de fazê-las. Nada é imposto em uma escrita automática. Tudo se sente se experimenta, se permite. Tudo transcende de dentro do indivíduo. É a prática da antropofagia modernista.
Meu papel aqui é o de alinhar no modelo costumeiro, consumível, regrado, parte do universo poético (antes inimaginável para a maioria) que eles nos permitiram ver, ler e apreciar. O texto individual de cada escrita automática foi devolvido ao aluno, pois entendemos que cabe a cada um a decisão de mostrar as particularidades de sua criação. Portanto, o que veremos aqui, são películas que se projetaram em minha tela mental com base nos roteiros surreais dos nossos estimados alunos.


Ari Mascarenhas


Onde encontrar: http://livroscostelasfelinas.blogspot.com.br/2014/05/segundos-de-ari-mascarenha.html?spref=bl

Túlio, uma única vez.

O peso do mundo
Contrasta
Com a leveza do corpo.

A pele fétida,
O gosto insalubre nos lábios
Descreve uma sensação...
De erro!


Um grande erro!
Erro por olhar a moral,
Imoral ato que pede cena
E em cena o véu cai!

Revela-se a podridão do espírito.

Mas como foi o ato?
Através de um sonho incômodo,
radiante, parti minha cara,
amparada por uma mesa de bar.

Aqui, embriagado
pelo pecado
de pensar coisas obscenas,
No bico de tinta registro o erro,
de um santo sem altar,
de um herói sem moral.

Esta noite fui ladrão,
fui político desonesto,
fui portador de toda vileza humana,
fui a desgraçada libra cega de mim mesmo.

Chamo-me Túlio!
Um engolir do “jota” cristão,
Sou um miserável pagão,
condenado por uma mente regrada.

Por quanto tempo atuarei
nesse palco sem plateia?
Quanto ainda terei de perder
para que notem meu erro?

Túlio é mesmo um idiota,
Um novo bastardo pedindo emancipação
Mais um dos muitos que não liberto
Túlio é grande, é deserto.

Inspiração fútil que mal será revisitada
E assim, fétido como a pele, será exposto.
Túlio é monstro.
Uma enorme alma feita de “quase nada”.
Túlio é uma pobre piada.
Sem começo, sem meio e
Que aqui declaro: Acabada.



Ari Mascarenhas dez/2013

Serafim...será...o..fim?

Uma breve observação sobre a obra Serafim Ponte Grande de Oswald de Andrade



A prosa fragmentada de Oswald vai além da influência cubista em
sua obra. Em Serafim Ponte Grande (1933), no meu entender, ela reforça a própria desconstrução do indivíduo diante da realidade em cacos. A São Paulo de Serafim não se encaixa em sua melopeia do século XIX. Nada mais existe. Nem a cidade que fora símbolo do desenvolvimento do país no ínicio do século, nem o indivíduo burguês tradicional do segundo império, restam apenas os vestígios desses tempos incrustados na epiderme da classe por maquilagens mal-acabadas e melancólicas. Serafim vive a intensidade de sua juventude em atrito com os valores caretas de uma sociedade extremamente hipócrita e arredia aos seus atos.E quanto aos revolucionários? Serafim vai traí-los. Sentimos isso na pele, recentemente, quando fomos traídos por aqueles que acreditamos (qualquer semelhança com o atual governo não é mera coincidência) No entanto, o tempo, sempre ele, acaba por adequar as "bizarrices" na normalidade, e se sua epopeia se desse nos tempos atuais, o excêntrico Serafim Ponte Grande seria adjetivado como um grande "careta". 
Enfim, definições e valores que se renovam (refazenda) na cíclica história de nossas tragédias. 

O grande "não-livro", como afirmou Haroldo de Campos, é o auge da produção de Oswald. Confecção cara do espírito atropofágico, aglutinação de gêneros e radicalização da proposta ficcional e das estruturas do romance. A justaposição dos estilos tece uma colcha de retalhos aquecida e efervescente, ao tempo em que esfria toda a expectativa de certos leitores, acostumados com as marcas retilíneas das tradicionais narrativas.


Respiros

Insisto em gritar
PALAVRAS!
Palavras, caras.
Insistentes palavras
gritadas.

Esforço em expor
IDEIAS!
Ideias, alheias.
Imprecisas ideias
expostas.

Clamo em propor
PROJETOS!
Projetos, inversos.
Inconclusos projetos
propostos.

Suplico em suspirar
EFEMERIDADES!
Efemeridades, medíocres.
Insatisfatória efemeridade
suspirada...

Suspiros são respingos
de respiros.

(...) ACORDES

O poema move
o tema.
Não trema!

O poema espalha
clara.
Não gema!

O poema bebe
sentimento.
Não esquema.




Ari Mascarenhas

A memória e a solidão do esquecimento - Um breve olhar para Cem anos de Solidão

Macondo, indo e vindo, num movimento cíclico que nos leva da origem ao fim sem ao menos notarmos que saímos do lugar. Desde o primeiro Buendía, amparado pelas crenças e determinações racionais de sua esposa (prima) Úrsula, o sucesso e a tragédia são irmãos siameses. Da ascensão da cidade e da família até a crise coletiva da memória, a guerra e a tragédia da chuva, Macondo é mesmo um povoado condenado ao esquecimento e a deterioração de seus bens públicos e material humano. 


A saga dos Buendías, entre seus José e Aurelianos, é, sobretudo, a saga de Macondo. O que se cria e se perde é a força de um povoado, a devastação de uma cultura que sucumbi diante de tantas pragas que abatem o antigo pantanal. Os Buendías são vítimas, assim como todos os outros moradores de Macondo, das tragédias que acometem a quase todas as civilizações humanas, e da qual ninguém pode se salvar.
A primeira catástrofe coletiva da cidade é a presença de um mal que nasce no seio dos Buendía, com a agregada Rebeca, e se espalha muito rapidamente, acometendo crianças e adultos, independente do clero ou da classe social: o mal da insônia. Sem conseguir dormir, com o passar do tempo, o ser humano perde sua habilidade de processar informações arquivadas e assim a memória se torna um disco rígido de pouquíssima capacidade de armazenamento. As pessoas do vilarejo passam a vagar pelas ruas a qualquer hora, criam novos hábitos, não se reconhecem como pessoas comuns e, como que num passe de mágica o mal, que um dia chegara sorrateiramente, vai embora.

Descobre-se, no decorrer da leitura, que toda tragédia só se despede das linhas limítrofes da cidade dos Buendías, para dar espaço à outra, deveras muito pior. Aqui, Aureliano que até então passava o dia modelando seus peixinhos de ouro, na oficina criada por seu pai, aproxima-se do administrador da cidade e se engraça com sua filha. Depois do casamento precoce e da morte de sua jovem esposa, Remédios, alimentado pelos entraves políticos debatidos na mesa de dominó com seu sogro sobre ideais liberais e conservadores, e diante dos massacres provocados pela tropa armada solicitada pelo administrador para conter qualquer insurreição, Aureliano Buendía, o segundo filho de Úrsula e José Arcádio, se transforma no coronel Aureliano, revolucionário e grande herói de Macondo, que com o passar do tempo cairia no esquecimento. 


Depois da guerra veio a banana. Um grande empreendimento capitalista instaurou-se na cidade e com isso inflou a população, derrubou matas para construção de casas populares, instaurou divisas claras entre burgueses e proletários, que culminou na primeira grande greve da cidade e no gigantesco genocídio que seria testemunhado por uma única e cansada visão. A de um Buendía. José Arcádio segundo, nome que homenageara seu tio morto na banheira, seu avô o primeiro dos Arcádios que morreu demente amarrado a uma árvore e seu pai Arcádio, o bastardo, o pior e mais cruel membro da família que se tornou o primeiro e único ditador de Macondo, foi a única testemunha do massacre dos trabalhadores que lotaram o trem de corpos amontoados levados pela penumbra do esquecimento coletivo. A indústria da banana começava a ruir e junto dela, mais uma vez, a cidade.
Os capitalistas só abandonaram Macondo quando essa foi abatida pela tragédia da chuva, que durou “quatro anos, onze meses e dois dias” e assim como a repentina morte dos Buendías que morriam “sem motivos” a chuva deixou de existir e não choveu por mais dez anos. Durante os anos de aguaceiro plantações foram perdidas, o gado foi aniquilado, o moradores que chegaram com o aparato capitalista se foram tão rapidamente quanto haviam se instalado na cidade. Levaram consigo seus comércios, suas famílias e suas memórias. 

Aliás, a memória, ou melhor, a ausência dela, que já demonstrara o estrago que poderia gerar na sociedade nos tempos de insônia, agora retorna com uma força estrondosa. A falta de relações sociais, por conta dos avanços da chuva, transformam os poucos moradores que restaram em Macondo em verdadeiros zumbis que sequer lutam pela sobrevivência. Não há mais interesse em reconstruir a cidade, nenhum Buendía toma a frente, até porque, nesse momento, só existe um deles, Aureliano Babilônia, filho de Mauricio Babilônia e Meme, neto de Fernanda e Aureliano Segundo, bisneto de Arcádio o monstro, tataraneto de José Arcádio e Pilar Ternera; e esse último da estirpe, após apaixonar-se perdidamente pela tia, passa seus dias em suas brincadeiras sexuais na casa que já fora o centro dos principais acontecimentos da cidade e que agora padeceria do descaso e da ausência de esperança. Esse "mal súbito" infectou todos os moradores antigos, recebido como herança pela doce Amaranta Úrsula. A união de Babilônia e Amaranta gera o ultimo Aureliano que se encerra e se consome nas ruínas de uma história que ninguém se recorda.
A mais longínqua figura da família é justamente a concubina que leva à perdição alguns dos membros mais célebres dos Buendías, Pilar Ternera. Vive mais de 150 anos e se torna, sem nenhuma pretensão de o ser, o único arquivo vivo de Macondo, levando consigo toda a história de um povoado que ascendeu ao status cidade grande e desapareceu na névoa do esquecimento. Pouco antes de se isolar no casarão o último Aureliano ainda procurou resgatar um pouco da memória de seus antepassados, incluindo a do coronel Buendía, mas ninguém se lembrava dele, apenas que se tratava de uma rua famosa no lugarejo.

A ausência da Memória é sem dúvida a pior tragédia de Macondo. Pior que não ter tido o êxito dos grandes povoamentos é sequer ter existido. Essa ausência mortifica definitivamente a possibilidade de algum aprendizado, de algum resíduo de resistência, vida ou sonho e com ela todo e qualquer empenho, de quem quer que tenha sido pobre ou rico, forte ou fraco, homem ou mulher, criança ou idoso, foi em vão.  A “morte da memória” leva consigo a história de quem a viveu na ilha de sua existência e na solidão de sua insignificância para a humanidade.

A escolha

Toda escolha
pode ser rocha
pode ser bolha.

Toda escolha
colhe.

Quando não coalha,
calha.
Quando não talha,
falha!

Toda escolha
rompe com a velha,
como navalha.

E ao final 
desta breve marca
que minha mão 
entalha

Busco a escolha
que me valha.




Ari Mascarenhas (21/01/2014)

Romance em fragmentos - Memórias Sentimentais de João Miramar ( Nota de Leitura)

As memórias são editadas, quase sempre, com o esforço contínuo do sentimento presente, do sentimento vivo no momento da exposição, e por conta dessa espinha dorsal certas cenas são posicionadas de maneira não linear.
Normalmente os livros de memórias são organizados sem se preocupar em reproduzir, na estética, esta característica, haja vista que o termo memória acaba endossando uma espécie de discurso onipresente do narrador e distante da reprodução real dos fatos.
Nesse sentido o romance de Oswald está muito próximo dos princípios realistas do que a maioria pode imaginar. A fragmentação textual, em diálogo com as vanguardas da época, reporta essa verossimilhança que os textos convencionais não conseguem alcançar.
Se não for sentimental a memória é mecânica, ou distanciada (neste caso em terceira pessoa - o que a deixa ainda mais ficcional); e é aí que o texto de Oswald nos surpreende em sua "clareza" - isso mesmo clareza de exposição. Assim como a fragmentação linguística de Guimarães nos trouxe outro olhar sobre a reprodução da linguagem popular, as imagens de Memórias Sentimentais de João Miramar nos permite olhar para a memória de maneira mais aproximada, e menos apaixonada, de como ela verdadeiramente se expõe na mente humana.

Pense em sua história e perceba que a fragmentação é inevitável. O romance pode ser construído sem o labor editorial que compõe uma linha única de exposição. João Miramar nos oferece os trechos impulsivos de sua memória sentimental tal qual ela as imagens exigem espaços na sua elucubração. O resultado disso, de acordo com a belíssima introdução de Haroldo de Campos, na edição de 1971, “... faz perimir o conceito de romance, de novela ou de conto, diante de uma nova ideia de texto".

Não dava pra ouvir

O político no estúdio
dissertava
autoritário
o seu quieto discurso
mudo
entre os vidros de um aquário.


O político no rádio
descrevia
temerário
o seu certo percurso
torto
entre as fichas de um fichário.

Cada ficha
era a escama
de um peixe
imaginário.
Cada frase
(barbatana)
era um feixe
de membranas,
surdo vocabulário
na garganta atravessado.

O politico se agitava
cada ficha soletrada
era a página
de outra folha já virada;
era a lâmina cortada
de um lacrado dicionário;
era o sono radiofônico
de outros peixes
nas águas de outro aquário.

O que o político explicava
em seus silêncios de nada
não chegava
aos ouvidos de quem ouvindo
não ouvia sua palavra.


Mário Chamie

à Violeta Pandolfi