Nessas memórias de
Graciliano Ramos podemos observar além de seu distanciamento plausível para a
confecção menos apaixonada e mais racional, uma despreocupação com os modelos
literários em voga na época. Auge do modernismo brasileiro, Graciliano está mais
preocupado com o conteúdo de sua obra e com a sua identificação com os
registros propostos do que necessariamente agradar aos interesses de uma
estética comprometida com os movimentos artísticos de um período histórico.
Memórias do Cárcere é
também, dentro dos preceitos defendidos por Lukács, um romance histórico de
natureza documental, que imprime ao protagonista, a obrigação de observar e
transformar o seu espaço. O herói, que por um longo período se mostra
desconhecer as causas pelas quais fora preso, por diversos momentos, observando
outros companheiros de confinamento, analisa sua própria capacidade
revolucionária e passa a auto-avaliar suas atitudes que sequer são dignas de um
prisioneiro político, no sentido de que, ele jamais tivera, verdadeiramente,
uma atitude revolucionária. Estes questionamentos nos encaminham para os
valores do narrador que jamais foram externados na prática.
A força da introspecção
de Memórias do Cárcere está em criar um universo de conflito para as discussões
que o universo exterior não poderia saber. Tanto pelo poder opositor do Estado
Novo, do qual era acusado de subversão, e pelos próprios princípios do grupo de
comunistas (Primeiras manifestações) o qual era acusado de pertencer. Aqui, nesses
espaços de conflito e criação é que se estabelecem as diretrizes para o que
viria a ser a mais brilhante obra memorialística que temos registro em nossa
língua.
Na introspecção
registrada nos manuscritos do cárcere e/ou ainda aquela que fora produzida anos
depois, quando de seu preparo para o projeto do livro, o autor nos presentei
com uma ficção baseada em registros memorialísticos de forte impacto catártico
que não nos permite questionar o teor jornalístico de suas observações.
Essas marcas ficcionais
podem ser observadas na onisciência do narrador quando mergulhado nas
preocupações de personagens alheios, como se uma percepção das expressões
desses personagens fosse o suficiente para determinar as profundas angústias
que estes sentiam, ou que, numa leitura mais atenta, denotam apenas o reflexo
de sua própria angústia diante da incerteza de seu destino, que lhe
acompanharia em quase todo o seu percurso como prisioneiro. No entanto, o que
há de mais evidente nessa estrutura narrativa, que busca alinhar os fatos reais
com o uso dos fatos criados, é a própria percepção do narrador com o ato da
criação na edição das memórias ora como positiva e ora com repulsa pelo próprio
narrador:
O diabo é que, se me decidisse a narrar por miúdo a conversa do capitão, tanchar-me-iam
de fantasista. Ou dar-me–iam crédito indivíduos que andassem no mundo da lua,
idiotas ou românticos (Ramos, p89).
A observar de atos de
seus próximos, aliados ou não, serve de um prato cheio para uma análise de sua
postura com “revolucionário” (termo pelo qual poderia ser acusado) e para uma
observação mais detalhista acerca da atitude do próprio movimento
revolucionário que se propunha como resistência. Ações que a atitude de um
militar, que se nenhum motivo aparente decidia por ajudá-lo, e que, para
qualquer um seria apenas um alimento da causa em que se injetava a confiança e
a própria liberdade, para o narrador era motivo de questionamento sobre o seu
fazer revolucionário.
Capitão Lôbo, portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no caso uma
espécie de deserção. Impossível explica-la. Se ele condenava s minhas ideias,
sem conhecê-las, direito, porque me trazia aquele apoio incoerente? Insolência
e brutalidade com certeza me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada
pior que nos encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos
certo número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha
neles – e as coisas não se passam como havíamos previsto: passam-se de modo contrário. A exceção nos atrapalha, temos
de reformular julgamentos. (RAMOS, p. 87-88)
E fora a busca por essa
renovação rápida dos valores que fizeram desse prisioneiro peculiar fugir às
atitudes de reflexão comuns a esse tipo de situação: A da adesão e da
repulsa.
Ou seja, a atitude de um
condecorado, um inimigo declarado, que discordava de seus preceitos e ainda
assim, contra a força que o emergia e o condicionava, agia. Isso, a atitude de
resistência é o que aquela intelectualidade não conseguia compreender e,
portanto o grande gatilho para os questionamentos desse cárcere que vivera até
então o espírito de resistência que pode ser observada no enxerto abaixo:
A nossa vida não tem muito valor, às vezes se encrenca e desejamos a morte;
faltando-nos coragem para o suicídio, exibimos outra forma de coragem; queremos
desaparecer; é uma perda individual. Mas ninguém, de senso perfeito, joga fora
os seus bens, pois nisso repousa o organismo social – e o sacrifício
constitui prejuízo coletivo. Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário
do que eu. Tinha-me alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do
fascismo, escrevera algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície,
nunca fizera à ordem ataque sério, realmente era um diletante (RAMOS, P
88).
Memórias do Cárcere é mais que
um documento de resistência, é sim, um importante registro dos preceitos
reflexivos sobre a práxis indispensável no dia-dia de quem almeja uma
transformação, independente de sua dimensão. Já que as mazelas e friezas do
cárcere ultrapassam as muralhas os alçapões de qualquer instituição, e
encarceram os projetos e sonhos revolucionários inertes no peito dos oprimidos
e militantes.
Ari Mascarenhas