O contracheque ( nanoconto)

Assim que cheguei ao escritório, abri o contracheque que adormecera sobre a mesa.
O auto-salário e a lista de benefícios intermináveis prenderam minha respiração; um frio percorreu minhas pernas até alcançar minha espinha e me deixar assombrado.
Antes de pedir para que alguém desligasse o ar condicionado, resolvi deixar de bisbilhotar a vida financeira de meu chefe.


Ari Mascarenhas

Canções sem palavras



                                  à pianista Sônia Rubinsky




Soa, Soa Lua Nova

Tercetos vivos,

Velados e regados em círculos finos,

Em souvenires prateados. 


Soa somente essa canção, sinais.

Sempre acesa e avessa às sedas,

palavras sem cantis.


Eis a peça quatro notas,

em sonolenta adolescência resisti.

Seus soares são vozes

zunindo em nosso passado.



Soa Lua nova

tão bela quanto era cheia

de ilusões em Lobos Neves.

Quase inclinasse açudes,

sensações cancionadas,

no deslize de seus dedos,

nessas Canções sem Palavras.



Heresias minhas tais notas

anotadas nessa cesta.

Poesia desse servo impulso.

Eis pessoas que detestam.



Soa Villa-Lobos nesse bis "exaltado",

em nossos aplausos senis.



Soa Sônia em novenas renovadas.





Ari Mascarenhas

Queria escrever somente

Não sei ao certo o que desejo com isso. Talvez apenas expressar. Um ímpeto guardado dentro da alma que pedi pra saltar e gravar-se no papel, na tela do computador, nas palavras. A grafia que registra os instantes. O meu instante.
Pois bem, mas o que exatamente esse impulso me força a dizer? Uma manifestação de repúdio aos fatos políticos atuais? Mais uma daquelas repetidas reclamações contra a excessiva exposição do carnaval que se repete anualmente? Um comentário banal sobre o futebol que de tão exposto na mídia acaba por se tornar cada vez mais banal? Ou alguma mensagem positiva que sugira a  mesmice como um lugar seguro e tranquilo em nossa busca incessante de não fazer nada?
Poderia expor também minha eterna discussão sobre o biografismo, se é que alguém vai ler isso, e assinar no fim como Luis Fernando Veríssimo. Isso garantiria os leitores que ignorariam os textos e o transformaria em um texto viral (termo da moda) nas redes sociais, e-mails e correntes. A exposição estaria garantida, mas não supriria o meu desejo de escrever somente. No fundo não é isso que eu esperava. Era só escrever e ignorar as muitas vozes que ficam em minha mente ditando o texto, citando minhas leituras, implorando pelas correções e enchendo meu saco.
Quero ignorar as vozes, os ruídos, os sussurros.
Não quero falar dos assuntos da mídia, nem das novidades da internet, nem dos assuntos que estão “bombando” nas redes sociais, enfim, não quero me preocupar com aquilo que acontece aos outros e tampouco ao que me acontece. Sem o direito de me defender ou acusar. Não quero desistir e nem lutar, talvez deixe aos meus inimigos aquele gostinho de vitória, já que quase nunca me viram calado, ou tão inerte como aparentemente estou. Casualidades glaucas é o que na verdade minha mente deseja agora. Essa calmaria esmeraldina que alguns chamam de morte.
Não, não quero morrer. É apenas uma metáfora, claro. É a morte das experiências, das sensações racionalizadas, das crenças, da utopia. Isso mesmo apenas da utopia. Quero continuar respirando, afinal, enquanto o coração bater eu estenderei minha trajetória sem aquelas interrupções alarmantes que chocam as famílias e alimentam as estatísticas. Não quero em minha lápide um tempo menor que 50 anos, independente de como se deram esses 50 anos. Meio século de respiração.
Meu lado de humano pergunta: Pra que serve respirar sem suspirar? O ciclo do sangue sem variações provocadas pela emoção? Um batimento contínuo e lento sem as palpitações mais empolgantes? Pra que serve comemorar os dias sem ter nada pra dizer?
E eu que queria escrever somente acabei caindo na auto-ajuda, bah! Agora não posso mais assinar como Luiz Fernando Veríssimo. Não tem humor.
Aproveitando que esse é um ano de eleição, e que ninguém se lembra mais do mal que essa assinatura fez a nossa educação, e que não falarei mal de políticos, e que também pode se tornar viral, e para não perder minha empolgação de viver que está diretamente ligada à crítica ao biografismo, assino como não poderia deixar de assinar.

Fiquem com Deus

Gabriel Chalita.