No café


UM TUCANO

Numa alvorada incerta,
um tucano de asas claras
riscou meu amanhecer.

Levantei-me apressado e furioso
com a ave que agredia meus sonhos;
solavancos sonoros dispersos.

Quando cheguei ao quintal,
deparei-me com um gemido
solene e sombrio.

Uma alma empenada,
de bico baixo e curvado,
pousara em meu varal.

Depois do breve susto,
e de recompor  a firmeza
de minhas pernas vacilantes,
achei que o ouvi soltar
cantigas de povos distantes;
de almas antigas.

Com o abrir do grande bico
entoava um lirismo familiar.
Uma súplica de meu íntimo,
vozes humanas de uma Itapecerica,
que eu, filho da terra, desconhecia.

Vozes de avós.

Reparei em seu olhar de escanteio,
refletindo um brilho glorioso,
pelo sucesso em me acordar.

“Maldita galinha preta e bicuda!”
Esbravejei acompanhado de algo qualquer
que lancei em sua direção.

Esquivou-se de minha cólera,
Com certa tristeza expressa,
fitou-me brevemente,
abriu uma grande capa
e lançou-se ao vento,
para longe de meu olhar atônito.

Anos depois compreendi
aquela visita matinal.
Eram tempos em que uma mata viva
enviava mensageiros nas
molduras de minhas manhãs.

Ele veio se despedir
e junto foi embora também
o mata borrão verde
que via de minha janela.

Para onde foram?
Não sei, mas creio que à praia.
Já que em seu lugar,
nasceu uma enorme anaconda
de concreto e asfalto.

Ari Mascarenhas

Um apólogo - Um brevíssimo olhar

Um apólogo - Machado de Assis ( clique nesse título para ouvir o conto)


O autor, ao narrar uma contenda entre uma linha e uma agulha ( clique no título para ouvir o conto), reforça as relações entre classes cosidas no pano da realidade. O esforço da agulha, que a seu ver não é reconhecido como esperara, é responsável pelo sucesso da linha. A matriz de forças que se estabelece na discussão apresentada no texto, desvela objetivos individuais responsável pelo afastamento de uma luta unida e focada no interesse comum. Pode-se perceber esse distanciamento no nas opiniões das personagens que, por sua vez, encontram ecos nos discursos superficiais e inférteis que justificam o prazer como sinônimo de sucesso. E para aquele que não encontra seu lugar nos “espaços” nobres, como convinha desejar a nova classe dominante, está fadado ao fracasso. Ainda que o conceito de fracasso seja meramente uma exclusão por forças de modismos e valorização de superficialidades, como por exemplo, um baile de luxo.

A agulha, soberba no início, sucumbe em sua condição natural e, ainda como forma de punição, ouve o discurso moralizante do alfinete.
A moral da história, retratada no fim do conto, dá-se pela constatação de que a união das classes, ou a ausência delas (as classes), revelaria uma força cooperativa tão, ou mais, eficiente que o modelo exploratório existente; e que a harmonia entre as diferenças é a única forma de encontrarmos no equilíbrio do trabalho a libertação dos seres, “bailando num belo rodado de um vestido de baile”. Ou seja, apenas essa harmonização, ainda que utópica, pode nos oferecer motivos verdadeiros para que possamos nos orgulhar.
Um mundo onde o meu sucesso seja fruto do sucesso alheio. Onde a sociedade possa brilhar tão forte que ninguém se preocupará em iluminar obscuridades existenciais com seu pequeno e inócuo feixe de luz.