"Um Deus e seus demônios"


"Um Deus e seus demônios" - Uma breve leitura de O Evangelho Segundo Jesus Cristo de José Saramago. 

Os dejetos humanos são insuflados nas figuras de suas divindades. A perfeição utópica do espírito dos homens não ecoa na configuração daquilo que lhe é supremo, absoluto, onipresente. Esta obra revela, de maneira chocante- por aquebrantar as cápsulas humanas de autoproteção e egocentrismo-  o que existe de pior em um deus comprometido com os valores mundanos de sua própria configuração. Não se poderia esperar uma confecção  mais humana de um Messias sem a aproximação daquele que lhe enviou. Cito, para facilitar a comparação, os inúmeros semideuses mitológicos que serviam aos anseios, desejos e vícios de seus criadores. Esses deuses eram puras  alegorias de sentimentos humanos que flanavam entre a nobreza do amor e a grotesca inveja. Deuses que brincavam com os humanos e, vez ou outra, infiltravam entre estes suas marionetes veladas. Jesus é uma marionete de um ser tirano e assustadoramente autoritário, capaz de destruir toda a humanidade apenas para atender aos desejos mais mesquinhos e doentios que uma mente humana poderia criar. Nesse grande jogo de insinuações, blefes, traições e muitas humilhações existem dois polos insofríveis por se pautarem em mecanismos bem distintos: de um lado a completa ignorância, sempre salvadora e ingênua, e do outro, o mais completo autoritarismo, intransigente, característico de um humor sofrível que se pauta na tragédia alheia.
Mas entre os polos, eis que existe o Meio.  “Eu sou o caminho, a verdade e a Vida” – A vida aqui é o meio, a transição, o processo de mudança, o Grande Milagre que fora criado por capricho e não por necessidade. E aqui está todo o drama de Jesus ( por vezes do próprio Diabo): Ter conhecimento do Jogo e se ver completamente impotente para mudá-lo.  O romance mostra um Messias, com poder de curar, fazer milagres, mas não mudar as regras de um jogo insano.
Em “O evangelho segundo Jesus Cristo”, José Saramago nos fornece instrumentos para refletir sobre uma perspectiva diferente a respeito do sacrifício cristão e de seus algozes. E mais, do meu ponto de vista, nos oferece uma coerente justificativa para a reprodução de uma divindade unificada que, diferentemente daquilo que nos vendem as igrejas cristãs, concatena-se em si as qualidades e os defeitos antes bem distribuídos entre as divindades pagãs e até mesmo pertencentes às sociedades maternas do berço da civilização ocidental. Ao suplicar aos homens para que perdoe Deus, Jesus Cristo se torna o nosso cordeiro, aquele que sacrificamos para continuar a crer e seguir o Deus que melhor nos representa, com as características que nossa civilização, mesmo sem assumir tanto admira: Autoritário, egocêntrico, Violento, impassível e, principalmente, Vingativo.
Um livro que vale a pena cada passagem, cada parágrafo, por sua provocação e, principalmente, pela releitura contextualizada da mais importante de nossa humanidade nos últimos 2000 anos.  

As ruas de minha antiga cidade


As ruas de minha antiga cidade sempre despertaram diversas sensações nos seus moradores mais antigos. Uns entoavam cantos as suas nostálgicas infâncias, outros preferiam contemplar o passado em silêncio e veneração, havia até aqueles que jamais confessaram seus devaneios e, numa redoma solitária, guardavam o tesouro de suas memórias. Eu, que desde criança caminhei por esses ladrilhos, jamais imaginei que faria parte do grupo de pessoas que lamentavam os tempos idos. Não porque meu presente pouco se assemelha àquele lugar seguro; mas, prefiro crer, que seja uma jornada insípida, delicada e sem volta.
Meu passado, incrustrado nas lajotas dessas ruas, ressoam o que de melhor eu deixei na vida. Tais ecos não surgem nos atos, nem mesmo nas relações, mas sim nas experiências que vivi.
Cada rua deserta, cada asfalto rachado testemunhou as noites gatunas que experimentei na adolescência. Cada neon ofuscado, cada poste ensebado pela cola dos lambe-lambes são testemunhas de um "eu" que não se perdeu no presente, apenas se apagou ante as aparências de um homem responsável, cuja finalidade é ilustrar uma sociedade esvaziada de sensações e embalsamada em suas hipócritas leis.

Ari Mascarenhas
Foto: (http://www.rmgouvealeiloes.com.br/catalogo)




Um instante Emily

Poema escrito em 2008, sobre um dos maiores romances da história.