Memórias do Cárcere – Relatos da experiência do
autor durante a prisão que sofrerá pela ação do governo Vargas ainda contra os
reflexos da Intentona Comunista.
Publicada em 1953, essa obra póstuma sofreu diversas
sanções, incluindo uma tentativa de censura do próprio PCB, que alegou a
necessidade de ocultação de determinados termos e avaliações do autor alagoano.
Nessas memórias
de Graciliano Ramos podemos observar além de seu distanciamento plausível para
a confecção menos apaixonada e mais racional, uma despreocupação com os modelos
literários em voga na época. Auge do modernismo brasileiro, Graciliano está
mais preocupado com o conteúdo de sua obra e com a sua identificação com os registros
propostos do que necessariamente agradar aos interesses de uma estética
comprometida com os movimentos artísticos de um período histórico.
Memórias do Cárcere é também,
dentro dos preceitos defendidos por Lukács, um romance histórico de natureza
documental, que imprime ao protagonista, a obrigação de observar e transformar
o seu espaço. O herói, que por um longo período mostra desconhecer as causas
pelas quais fora preso, por diversos momentos, observando outros companheiros
de confinamento, analisa sua própria capacidade revolucionária e passa a
autoavaliar suas atitudes que sequer são dignas de um prisioneiro político, no
sentido de que, ele jamais tivera, verdadeiramente, uma atitude revolucionária.
Estes questionamentos nos encaminham para os valores do narrador que jamais
foram externados na prática.
A força da
introspecção de Memórias do Cárcere
está em criar um universo de conflito para as discussões que o universo
exterior não poderia saber. Tanto pelo poder opositor do Estado Novo, do qual
era acusado de subversão, quanto pelos próprios princípios do partido comunista
(primeiras manifestações) que também lhe acusaram de pertencer. Aqui, nesses
espaços de conflito e criação é que se estabelecem as diretrizes para o que
viria a ser a mais brilhante obra memorialística que temos registro em nossa
língua.
Na introspecção
registrada nos manuscritos do cárcere e/ou ainda aquela que fora produzida anos
depois, quando de seu preparo para o projeto do livro, o autor nos presenteia
com uma ficção baseada em registros memorialísticos de forte impacto catártico
que não nos permite questionar o teor jornalístico de suas observações.
Essas marcas
ficcionais podem ser percebidas na onisciência do narrador quando mergulhado
nas preocupações de personagens alheios. Como se uma percepção das expressões
desses personagens fosse o suficiente para determinar as profundas angústias
que estes sentiam, ou que, numa leitura mais atenta, denotam apenas o reflexo
de sua própria angústia diante da incerteza de seu destino, que lhe
acompanharia em quase todo o seu percurso como prisioneiro. No entanto, o que
há de mais evidente nessa estrutura narrativa, que busca alinhar os fatos reais
com o uso dos fatos criados, é a própria percepção do narrador com o ato da
criação na edição das memórias ora como positiva e ora como repulsiva pelo
próprio:
O diabo é que,
se me decidisse a narrar por miúdo a conversa do capitão, tanchar-me-iam de
fantasista. Ou dar-me–iam crédito indivíduos que andassem no mundo da lua,
idiotas ou românticos (RAMOS, p89).
A observação de
atos de seus próximos, aliados ou não, serve de um prato cheio para uma análise
de sua postura com “revolucionário” (termo pelo qual poderia ser acusado) e
para uma análise mais detalhista acerca da atitude do próprio movimento
revolucionário que se propunha como resistência. Ações que a atitude de um
militar, que sem nenhum motivo aparente decidia por ajudá-lo, e que, para
qualquer um seria apenas um alimento da causa em que se injetava a confiança e
a própria liberdade, para o narrador era motivo de questionamento sobre a sua
práxis.
Capitão Lôbo,
portanto, fugia ao preceito. De certo modo havia no caso uma espécie de
deserção. Impossível explicá-la. Se ele condenava s minhas ideias, sem
conhecê-las, direito, porque me trazia aquele apoio incoerente? Insolência e
brutalidade com certeza me atiçariam ódio, mas seriam compreensíveis, e nada pior
que nos encontrarmos diante de uma situação inexplicável. Admitimos certo
número de princípios, julgamo-los firmes, notamos de repente uma falha neles –
e as coisas não se passam como havíamos previsto: passa-se de modo contrário. A
exceção nos atrapalha, temos de reformular julgamentos. (RAMOS, p. 87-88)
E fora a busca
por essa renovação rápida dos valores que fizeram esse prisioneiro peculiar,
fugir às atitudes de reflexão comuns a esse tipo de situação: A da adesão e da repulsa.
Ou seja, a atitude
de um condecorado, um inimigo declarado, que discordava de seus preceitos e
ainda assim, contra a força que o emergia e o condicionava, agia. Isso posto, a
atitude de resistência é o que aquela intelectualidade não conseguia
compreender e, portanto o grande gatilho para os questionamentos desse cárcere
que vivera até então o espírito de uma subversão que pode ser observada no
enxerto abaixo:
A nossa vida não
tem muito valor, às vezes se encrenca e desejamos a morte; faltando-nos coragem
para o suicídio, exibimos outra forma de coragem; queremos desaparecer; é uma
perda individual. Mas ninguém, de senso perfeito, joga fora os seus bens, pois
nisso repousa o organismo social – e o sacrifício constitui prejuízo coletivo.
Afinal capitão Lobo devia ser muito mais revolucionário do que eu. Tinha-me
alargado em conversas no café, dissera cobras e lagartos do fascismo, escrevera
algumas histórias. Apenas. Conservara-me na superfície, nunca fizera à ordem
ataque sério, realmente era um diletante (RAMOS, P 88).
Memórias do Cárcere é mais que um
documento de resistência, é sim, um importante registro dos preceitos
reflexionantes sobre a práxis indispensável no dia-dia de quem almeja uma
transformação, independente de sua dimensão. Já que as mazelas e friezas do cárcere
ultrapassam as muralhas os alçapões de qualquer instituição, e encarceram os
projetos e sonhos revolucionários inertes no peito dos oprimidos e militantes.
Nenhum comentário:
Postar um comentário
Para fazer seu comentário, por gentileza, deixe seu nome seu e-mail. Dê sua opinião sobre os temas e, ou, o blog. Muito Obrigado!