Macondo,
indo e vindo, num movimento cíclico que nos leva da origem ao fim sem ao menos
notarmos que saímos do lugar. Desde o primeiro Buendía, amparado pelas crenças
e determinações racionais de sua esposa (prima) Úrsula, o sucesso e a tragédia
são irmãos siameses. Da ascensão da cidade e da família até a crise coletiva da
memória, a guerra e a tragédia da chuva, Macondo é mesmo um povoado condenado
ao esquecimento e a deterioração de seus bens públicos e material humano.
A
saga dos Buendías, entre seus José e Aurelianos, é, sobretudo, a saga de
Macondo. O que se cria e se perde é a força de um povoado, a devastação de uma
cultura que sucumbi diante de tantas pragas que abatem o antigo pantanal. Os
Buendías são vítimas, assim como todos os outros moradores de Macondo, das
tragédias que acometem a quase todas as civilizações humanas, e da qual ninguém
pode se salvar.
A
primeira catástrofe coletiva da cidade é a presença de um mal que nasce no seio
dos Buendía, com a agregada Rebeca, e se espalha muito rapidamente, acometendo
crianças e adultos, independente do clero ou da classe social: o mal da
insônia. Sem conseguir dormir, com o passar do tempo, o ser humano perde sua
habilidade de processar informações arquivadas e assim a memória se torna um
disco rígido de pouquíssima capacidade de armazenamento. As pessoas do vilarejo
passam a vagar pelas ruas a qualquer hora, criam novos hábitos, não se
reconhecem como pessoas comuns e, como que num passe de mágica o mal, que um
dia chegara sorrateiramente, vai embora.
Descobre-se,
no decorrer da leitura, que toda tragédia só se despede das linhas limítrofes
da cidade dos Buendías, para dar espaço à outra, deveras muito pior. Aqui,
Aureliano que até então passava o dia modelando seus peixinhos de ouro, na
oficina criada por seu pai, aproxima-se do administrador da cidade e se engraça
com sua filha. Depois do casamento precoce e da morte de sua jovem esposa,
Remédios, alimentado pelos entraves políticos debatidos na mesa de dominó com
seu sogro sobre ideais liberais e conservadores, e diante dos massacres
provocados pela tropa armada solicitada pelo administrador para conter qualquer
insurreição, Aureliano Buendía, o segundo filho de Úrsula e José Arcádio, se
transforma no coronel Aureliano, revolucionário e grande herói de Macondo, que
com o passar do tempo cairia no esquecimento.
Depois
da guerra veio a banana. Um grande empreendimento capitalista instaurou-se na
cidade e com isso inflou a população, derrubou matas para construção de casas
populares, instaurou divisas claras entre burgueses e proletários, que culminou
na primeira grande greve da cidade e no gigantesco genocídio que seria
testemunhado por uma única e cansada visão. A de um Buendía. José Arcádio
segundo, nome que homenageara seu tio morto na banheira, seu avô o primeiro dos
Arcádios que morreu demente amarrado a uma árvore e seu pai Arcádio, o
bastardo, o pior e mais cruel membro da família que se tornou o primeiro e
único ditador de Macondo, foi a única testemunha do massacre dos trabalhadores
que lotaram o trem de corpos amontoados levados pela penumbra do esquecimento
coletivo. A indústria da banana começava a ruir e junto dela, mais uma vez, a
cidade.
Os
capitalistas só abandonaram Macondo quando essa foi abatida pela tragédia da
chuva, que durou “quatro anos, onze meses e dois dias” e assim como a repentina
morte dos Buendías que morriam “sem motivos” a chuva deixou de existir e não
choveu por mais dez anos. Durante os anos de aguaceiro plantações foram
perdidas, o gado foi aniquilado, o moradores que chegaram com o aparato
capitalista se foram tão rapidamente quanto haviam se instalado na cidade.
Levaram consigo seus comércios, suas famílias e suas memórias.
Aliás,
a memória, ou melhor, a ausência dela, que já demonstrara o estrago que poderia
gerar na sociedade nos tempos de insônia, agora retorna com uma força
estrondosa. A falta de relações sociais, por conta dos avanços da chuva,
transformam os poucos moradores que restaram em Macondo em verdadeiros zumbis
que sequer lutam pela sobrevivência. Não há mais interesse em reconstruir a
cidade, nenhum Buendía toma a frente, até porque, nesse momento, só existe um
deles, Aureliano Babilônia, filho de Mauricio Babilônia e Meme, neto de
Fernanda e Aureliano Segundo, bisneto de Arcádio o monstro, tataraneto de José
Arcádio e Pilar Ternera; e esse último da estirpe, após apaixonar-se
perdidamente pela tia, passa seus dias em suas brincadeiras sexuais na casa que
já fora o centro dos principais acontecimentos da cidade e que agora padeceria
do descaso e da ausência de esperança. Esse "mal súbito" infectou
todos os moradores antigos, recebido como herança pela doce Amaranta Úrsula. A
união de Babilônia e Amaranta gera o ultimo Aureliano que se encerra e se
consome nas ruínas de uma história que ninguém se recorda.
A
mais longínqua figura da família é justamente a concubina que leva à perdição
alguns dos membros mais célebres dos Buendías, Pilar Ternera. Vive mais de 150
anos e se torna, sem nenhuma pretensão de o ser, o único arquivo vivo de
Macondo, levando consigo toda a história de um povoado que ascendeu ao status
cidade grande e desapareceu na névoa do esquecimento. Pouco antes de se isolar
no casarão o último Aureliano ainda procurou resgatar um pouco da memória de
seus antepassados, incluindo a do coronel Buendía, mas ninguém se lembrava
dele, apenas que se tratava de uma rua famosa no lugarejo.
A
ausência da Memória é sem dúvida a pior tragédia de Macondo. Pior que não ter
tido o êxito dos grandes povoamentos é sequer ter existido. Essa ausência mortifica
definitivamente a possibilidade de algum aprendizado, de algum resíduo de
resistência, vida ou sonho e com ela todo e qualquer empenho, de quem quer que
tenha sido pobre ou rico, forte ou fraco, homem ou mulher, criança ou idoso,
foi em vão. A “morte da memória” leva
consigo a história de quem a viveu na ilha de sua existência e na solidão de
sua insignificância para a humanidade.
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