A evidente
comparação entre o estilo machadiano e a narrativa em primeira pessoa empregada
por Chico Buarque no romance Leite
Derramado é o ponto de partida para esta leitura, que visa expor
semelhanças e influências diretas da personagem Capitu, Dom Casmurro, que o
autor utiliza para a construção de sua Matilde.
A afirmação
seminal deste artigo, apresentada no parágrafo anterior, baseia-se nos
depoimentos do jornalista Heitor Ferraz que se manifestou publicamente, assim
como outros, na página virtual do livro, mantida pela editora. Vejamos sua
declaração antes de iniciarmos essa dissertação.
“Ao
ler o livro, é inevitável pensar no Machado de Assis de Dom Casmurro e
de Memórias Póstumas de Brás Cubas - este último por conta do enredo
em que aparentemente não acontece nada e nenhuma narrativa se estabelece como
determinante. O diálogo eficiente com o maior escritor brasileiro dá a medida
do triunfo literário que é este novo romance de Chico Buarque.” —
Heitor Ferraz, Revista BRAVO!
Com base no
depoimento acima vejamos algumas características comuns nos trabalhos de
Machado de Assis (Memórias Póstumas de Brás cubas) e Chico Buarque (Leite
Derramado).
Principiamos
pela recorrente narração que reflete as lembranças de dois nostálgicos
personagens. A “Alma” de Brás Cubas, agora desgarrada de um corpo em deterioração
recorda momentos vividos desde a infância, incluindo a elaboração de diálogos,
descrição precisa dos espaços, das percepções e dos julgamentos que o
personagem fazia de seus atos e de outrem. Essas lembranças, embora disformes
de seu caráter verossímil, são narradas numa seqüência lógica e ordenada, a fim
de prestarem sustentação aos argumentos narrativos defendidos pelo personagem.
Numa visão fúnebre, depressiva, mas sem perder o bom humor, Brás Cubas se
lamenta por ter vivido uma história sem grandes feitos e cuja simples razão de
nada haver conquistado seja o único motor dessa sua grande epopéia narrativa de
fatos inócuos. A maestria de Machado,
que faz com que uma vida sem nenhum fato interessante, do ponto de vista dos
romances de aventura, se torne numa inesquecível história sentimental de
derrota perante a falta de conquistas dentro dos valores que compete uma
sociedade burguesa, é o que promove sua obra ao estado de alicerce realista da
literatura brasileira. Braz cubas era um homem de posses que nada conquistou e
de herança só lhe restou um nome.
Pouco mais que
um século se passou e eis que surge um tal de Eulálio Assumpção, no romance
Leite Derramado, contemporâneo de Braz Cubas, mas que só viemos conhecer nas
páginas de um romance realista do século XXI. Personagem excêntrico e, como
ainda não desencarnou durante as narrações de sua memória, atribui suas
lembranças desordenadas e às vezes confundidas com falsetes do presente ao seu
centenário corpo efêmero. Esta narrativa, que tenta dar conta de um tempo bem
maior do que o da vida de Eulálio, apresenta-se de maneira humanamente
controvérsia, confusa, ofertando o caráter verossímil da maioria das lembranças
humanas.
Características
que representam o cotidiano, suas ansiedades, medos e objetivos, utilizadas na
segunda metade do século XIX serão retomados no século XXI narradas por um
centenário personagem que acompanhou esse longo período de transformação.
O personagem
Eulálio é o próprio realismo às margens das transformações artísticas do século
XX, que na experiência mutante do autor, derivada de suas diversas
contribuições artísticas que vão do campo da música, passando pela dramaturgia
e chegando à literatura, transformou-se no declínio dos valores patriarcais do
Brasil.
Chico Buarque
retoma em Leite Derramado a linearidade da narração machadiana com a
fragmentação factual de Macunaíma, obra seminal de Mario de Andrade, e
construiu , com estilo próximo da dramaturgia, uma espécie de romance-roteiro,
pronto para ser encenado. Uma abrupta retomada da estética realista, em tempos
da virtualidade textual que avança sobre a tendência de textos mais simples e
enxutos, não apresenta como produto final , em se tratando de Leite
Derramado,um abandono das funções sociais do realismo no século XIX.
A função da obra
realista é sintetizar temas universais e reproduzir seus embates inevitáveis
nos diversos campos da representação humana, como acontecera em Madame Bovary, Memórias
Póstumas de Brás Cubas e outros “clássicos” desse período; assim sendo, Chico
Buarque no momento em que a classe média sofre o seu maior achatamento desde
sua aparição, consegue transcrever o drama deste fenômeno e os desafios sociais
que os cidadãos da classe média, muitos herdeiros de abundantes lembranças
capitalistas, vivenciam em seu presente. De acordo com o economista, Waldir Quadros¹, em entrevista concedida à folha de São
Paulo no dia 28 de Abril de 2007 sobre a questão do achatamento da classe
média, "ocupações precárias e mal remuneradas vão sendo aceitas como um
mal menor [...], e cada vez mais os indivíduos e as famílias vão relaxando seus
padrões morais na luta pela sobrevivência”. O que demonstra o fenômeno da
migração da classe média para a pobre e rica, com algumas alterações econômicas
significativas do ponto de vista do consumo. Vejamos no primeiro parágrafo de Leite
Derramado a lembrança dos tempos idos quando os bens eram escassos para um
filho de um diplomata brasileiro:
Quando eu sair daqui vamos nos casar na fazenda
da minha feliz infância, lá na raiz da serra. (...) mas se você não gostar da
raiz da serra por causa das pereças e dos insetos, ou da lonjura ou de outra
coisa, poderíamos morar em botafogo, no casarão construído por meu pai. Ali há
quartos enormes, banheiros de mármore com bidês, vários salões com espelhos
venezianos, estátuas, pé-direito monumental e telhas de ardósia importadas da
França.
Artigo continua no Medium.br
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